Vermelho Carmim

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Celina Albano (CA): Olha, eu tenho que te dizer o seguinte, eu não sei por que razões, mas as pessoas sempre me viam como uma mulher que batalhava contra a situação [indesejáveis] das mulheres em geral – desde a época de colégio, na faculdade, também quando comecei dar aula também, sabe? Eu sempre era aquela que ia falar com os outros, tinha que mudar a situação. Uma vez eu mudei a situação do Departamento de Ciências Política [da UFMG]: descobri que os homens ganhavam mais, uma bolsa melhor do que a nossa, os solteiros; porque os casados tinham que ganhar mesmo. Mais engraçado é que tinha um padre na história que ganhava mais do que a gente. E quando eu cheguei lá no diretor eu falei: “Mas por quê?” Ele respondeu: “Não, porque a ele tem muitos gastos.” Aí eu falei: “Olha, tenho certeza que eu gasto mais em cerveja e vodka do que ele [o padre], entendeu? Então acho bom aumentar a nossa cota!

E aumentamos a cota, à custa da comparação com o padre, um grande amigo meu, o Jesuíta.1 Eu sempre tive esse… As pessoas me viam meio como aquela pessoa que reivindicava as coisas e tal e, muitas vezes, tinha a ver com nossa própria condição feminina.

Aí eu fui pra Europa e caí na Universidade de Manchester (UK). E você pensa assim: a gente é muito fruto daquelas pessoas com quem você anda, com quem você convive. E eu tive a sorte em ter amigas que também pensavam como eu: que a situação não pode ser assim, nós temos que tentar participar mais das decisões. Tinha, por exemplo, a Claire Bacha2 – era americana que foi casada com Edmar Bacha3 e era muito militante, sabe? Assim pelo fato dela entrar sempre em contato com a militância nos Estados Unidos, segundo lugar da universidade, eles moraram em Harvard. Então a Claire sempre foi uma pessoa que a gente conversava muito. Depois foi a Bila Sorj4, que também estava comigo lá, então nós três conversávamos, discutíamos e tudo. E nós começamos a participar no DA [Diretório Acadêmico] da Universidade de Manchester, tinha sempre conferências de pessoas interessantes e a gente ia. Eu me lembro, eu vi uma das ídolas inglesas da época era a Sheila Rowbotham5 que era uma das que 

encabeçavam o movimento de mulheres e tudo. E a gente lia muito, assim autoras como Betty Friedan6 – a gente conversava e lia demais sobre isso, coisa que aqui no Brasil ainda não tinha tanta literatura acessível como tinha lá. Tinha muito panfleto, muita publicação menos luxuosa, mais de tipo popular que a gente comprava nas bancas. 

Lá em Manchester nós já tínhamos entrado em contato com um grupo de mulheres que tinham uma casa pra mulheres espancadas. Então foi assim aquele choque pra gente e tal – tinha uma casa, que as mulheres se refugiavam lá. E a gente ia a algumas reuniões tranquilas pra assistir – elas nos chamavam porque tínhamos uma amiga que trabalhava numa dessas casas. Estávamos sempre a Claire, eu e a Bila, nós três, procurando entender o mundo feminino e a opressão sobre as mulheres.

Aí quando eu cheguei aqui, nos 1980, fui logo comunicada do movimento das mulheres que dona Helena Greco7 tinha organizado, o movimento da anistia.8 [MFPA – Movimento Feminino Pela Anistia]. Então eu entrei em contato com elas, mas senti que ali tinha certa uma abordagem muita política. Era uma questão da mulher, mas vista ainda sobre um ângulo que não era assim o feminismo que eu tinha começado a discutir – que não passava por partidos, nem por células partidárias, nem nada. Era uma coisa mais ampla, mais geral.  Então eu não me engajei. (…) E aí eu falei: “Gente, olha, eu estou vindo da Inglaterra (é muito chato ficar falando de comparações), mas lá tem coisas muito interessantes como pequenos grupos ou então eventos onde você organiza um dia inteiro de palestras com discussões”. Aí o pessoal dizia: “Ah, Celina, aqui não dá porque as mulheres não tem lugar onde guardar os filhos, deixar os filhos”. E eu falei: “Não! Vamos pedir os maridos, os companheiros pra organizar as atividades pras crianças”.  Disseram: “Ai que orgulho, Celina, só mesmo você vindo da Inglaterra que pensa uma coisa dessas”.

E olha, foi um sucesso! E eu me lembro, que pra mim assim foi um orgulho porque a dona Marisa9, a mulher do Lula,10 ela estava aqui. Nós fomos lá para aquele colégio das freiras no Eldorado e fizemos o dia inteiro de palestras, de atividades e a dona Marisa uma hora me chamou, falou: “Eu tô olhando isso aqui. Eu nunca vou conseguir isso em São Bernardo”. Eu falei assim: “Eu acho difícil também, mas tenta!” Eu me lembro até hoje, aquela figura bonita, assim risonha.

Carmem Rodrigues (CR): Então gostaria de perguntar uma coisa: foi lá na Inglaterra que você viu as primeiras políticas públicas voltadas para a mulher?

(CA): Sim, com certeza. E eram políticas municipais, eram as local policies, não era política nacional. Era sempre a administração municipal que organizava, junto com mulheres e tal. Tinha problemas, eram casas muito pobres para o padrão inglês; aqui seriam ótimas. Mas era difícil, tinha muita violência, não é? E quando eu cheguei aqui também, contei essa experiência, eu vou falar isso é verdade. Muita gente do PT foi contra eu dar esse tipo de exemplo, porque eles falavam que a violência era uma questão que incidia muito sobre a classe operária. E que isso iria chamar atenção se eu ficasse falando de violência contra a mulher, que iria chamar atenção. Eu falei: “Não, eu não acredito nisso, não aceito. Vou continuar falando do mesmo jeito porque eu acho que é uma situação que abrange as diferentes classes”. E aí que teve a coincidência, (…) que a violência não era só de classe operária, (…) e aconteceram aqueles dois assassinatos.11

Então uma noite, aí que começa toda a história da preparação do ato do QuemAmaNãoMata (QANM), uma noite a Miriam Chrystus12 me liga em casa e pede se eu poderia ir [dar entrevista] Rede Globo.

Fui dar aula, voltei pra casa, mudei de roupa e fui pra entrevista. (…) E na verdade eu falei muito porque eu estava indignada entendeu? Porque era algo que assim, eu tinha uma vida afetiva tão boa, tão tranquila e pensava naquelas mulheres que, por quererem ser livres, tranquilas e viverem mais intensamente as oportunidades elas tinham sido mortas. Isso me deu uma revolta muito grande. (…) Quando eu cheguei em casa o que aconteceu? Uma coisa que eu nunca imaginei: meu telefone não parava de tocar! E eram 

as pessoas mais diferentes, além das pessoas da FAFICH, todo mundo dizia: “Celina que legal, que bom que você falou, é isso mesmo!”.

À tarde eu ficava na FAFICH pra preparar os trabalho, ler, estudar e avisei minhas colegas que estava indo pra lá. Eu morava a três quarteirões [da FAFICH]. Aí cheguei lá e todas vieram: “Nós vamos, temos que organizar uma reunião hoje à noite, pelo que você falou. Nós temos que reagir mesmo, não podemos aceitar essa situação”. (…) Você acredita que às 18 horas já tinha umas 20 mulheres esperando a reunião porque a sala lotou, era uma sala de 40 lugares mas tinha gente em pé; só mulher e todo mundo falando, aquela coisa. A Miriam [Chystus] ficou coordenando a mesa. Eu expliquei pra Miriam: “Olha está acontecendo isso, você vem pra cá. E Miriam assumiu a coordenação dos trabalhos, junto com mais umas pessoas. Aí e fizemos essa reunião;  a partir daí começamos: “Vamos reunir, mas não em lugar fechado? Vamos sair pra rua?” Cada uma falava alguma coisa, então saiu um comitê (do qual eu participava também) para organizar um evento. E a gente pensou, como nós todos tínhamos sido militantes de passeatas estudantis, pensamos: “Tem que ser na Igreja de São José!” Porque na época das nossas passeatas sempre tinha a Igreja São José no percurso. Ou pra gente se esconder ou pra gente ficar lá gritando.

Eu acho que o grande sucesso nosso da mobilização (porque foi um sucesso), pense você encher a escadaria da Igreja São José com 500 pessoas em 1980, tá? Mas foi uma coisa muito interessante porque, nessa organização, os partidos não entraram. Entraram representantes, por exemplo, tinha a Jô, tinha a Luzia, cada uma de seus movimentos, a dona Helena Greco, mas ninguém falava eu sou o partido, sou isso aqui, somos nós mulheres aqui. Foi muito legal isso, entendeu? Deu uma conotação mais apartidária, mais suprapartidária.

(…)Não é só aqui não, mata é no Brasil inteiro”. E o caso seguinte, que as muitas Marias, Antônias, Raimundas, não aparecem no jornal. Mas a Eloísa Ballesteros e a Maria Regina era outra situação13. E também já tinha o antecedente da Ângela Diniz14, da Jô Lobato15. Então, claro, tinha um pano de fundo muito pesado, dramático também.

E aí eu comecei a ser chamada pro Rio [de Janeiro], pra São Paulo, pra Brasília, participar de debates. Aqui eu participei de debates fortes com advogados. E aí, nesse meio tempo, começamos a pensar que em nos organizar institucionalmente. Até porque não poderíamos ser aquele grupo que participa e evapora. Aí que surgiu a ideia do Centro [Centro de Defesa dos Direitos da Mulher]. Nessa situação, a ideia era consolidar algo que tivesse um nome, que nos apresentasse pra sociedade brasileira como um todo, como um grupo de mulheres que queriam trazer a questão da violência. E isso causou um estranhamento também na esquerda mais radical. Porque aquilo que eu falei: eles achavam que ao falar de violência você chamava atenção pra classe operária. Que aparecia como o centro da violência – parecia que toda hora tinha marido espancando mulher, entendeu? E mesmo que tivesse, nós tivemos que falar, entendeu? E isso causou um problema um pouco lá dentro do PT. (…) Porque, naquela época, o feminismo no Brasil não tinha essa característica mais de voltar pra questões que diziam da intimidade dos casais ou da sexualidade da mulher. Eram questões mais voltadas pra questão dos direitos trabalhistas, era trabalho igual salário igual. Então a violência cortava um pouco essa linha e chamava atenção para esse aspecto que entrava na subjetividade das pessoas.

Aí foi muito interessante que a FAFICH virou assim o centro do debate feminista em Belo Horizonte. E a gente começou a fazer grupos de reflexão, discutir essas coisas mais específicas mesmo, isso aqui é específico da questão feminina da opressão, do patriarcalismo. (…) Então a gente começou a trocar ideias e tal e saiu então a ideia das casas, as casa das mulheres espancadas, as Battered Wifes – elas dormiam, ficavam lá com as crianças. Aqui a gente não tinha estrutura nenhuma, não tinha nem creche! Como que ia fazer casa pra mulheres espancadas, né? Ninguém ia pegar essa causa. Aí nós fizemos, começamos, via São Paulo, a discutir essa questão de dar o apoio emergencial e jurídico, SOS Mulher. E nós tínhamos grupos, no princípio, a Dinorah deve saber melhor do que eu( ela deve estar com tudo anotadinho), a gente dividia em grupos pra dar atendimento às mulheres, ouvir as mulheres e aí entendemos cada vez mais que era necessário mesmo um ponto onde concentrar essa questão. Até pra evitar muitos problemas com as outras que não queriam se envolver, porque era um trabalho difícil. Eu me lembro que chegava em casa arrasada – tinha dia que eu chorava… Comecei a mentir minha idade, porque as mulheres eram tão acabadas, tão assim sofridas, então eu era sempre mais nova do que elas! Mas, na verdade era o contrário, eu era bem mais velha do que elas. Então a gente viu estratégias e fomos levando. Depois foi quando a Fundação Ford chegou.

 (…) a Escola Direito [da UFMG] tem um prédio com elevador, uma estrutura de universidade, então isso estava inibindo as mulheres: elas nos telefonavam e falavam as coisas no telefone, mas não nos procuravam mais. Então aí houve a discussão, todo mundo concordou e tal, Conceição Rubinger16 a Karin Smigay17 e várias outras – a Júlia, a Silvaninha Coser, a Beth Almeida18, a Fernanda Colares Arantes. Nossa Fernanda era fantástica, elas eram advogadas. Nós tivemos advogados homens, estudantes do último ano da Direito que participaram do CDM como estagiários. Um deles é famoso porque é Promotor do Ministério Público; o outro é um advogado de família, o Rodrigo da Cunha Pereira; e o Antônio que tocava na Orquestra Sinfônica também. Então era um grupo muito unido, saíamos juntos, discutíamos.

Então, depois de um ano e meio, nós saímos da Faculdade de Direito, por volta de 1982 ou 1983. Aí entrou o projeto da Bila Sorj, da Paula Monteiro e Conceição Rubinger, que montaram o projeto para Fundação Ford. E aí nós recebemos financiamento. Aí nós alugamos uma casa na rua São Paulo, um lugar bem central, uma casa de um pavimento, muito tranquilo. Era o SOS [Mulher] que era o fundamental, o atendimento. Podíamos chamá-las pra discussões, grupos de reflexão. Tudo isso, um espaço multi funcional em termos de atividades e tudo. Foi muito legal. E aí eu fui convidada pra Constituinte de 1988.

O nosso motivo principal era bem voltado para as questões específicas da mulher. Apesar de a gente saber toda a questão da ditadura… a repercussão do Centro é muito interessante, sabe? Agora era um trabalho que exigia mais dedicação, por exemplo, do que eu estava disposta a dar, entendeu? E eu tinha vários outros interesses e tal, e me senti um pouco assim sobrecarregada… Ao mesmo tempo, as pessoas achavam que eu queria aparecer e fui cada vez menos, fui me afastando. Aí fui convidada pra ir pra Brasília e aí foi uma experiência assim marcante…

(CR): Como surgiu a Constituinte na sua experiência?

(CA): Eu fui convidada pra ser diretora técnica do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM)19 na época da Constituinte, que foi 1987, na preparação da Constituinte. Fui diretora e, nossa, foi fantástico! Foi uma experiência muito interessante, éramos atacadas… Aí a briga aumentou, aumentou o volume, a densidade e tal. Mas o Conselho, ele foi muito bem estruturado e acho que isso se deve muito à luta da Ruth Escobar20. Ela foi pra frente mesmo e lutou e como o Sarney21 gostava muito dela, respeitava muito, ela tinha um canal direto. O conselho era um órgão de Estado, não era um órgão de governo. Isso nós fazemos questão de frisar porque, de uma certa forma, isso diminuía o impacto das brigas partidárias. Então nós éramos um órgão de Estado e por isso trabalhávamos junto ao Ministério da Justiça, mas éramos independentes dele. Na época era o Brossard22 que foi ministro.

E tinham um grupo de conselheiras também assim, muito bárbaro. Tinha a Ruth Cardoso,23 a Ruth Escobar, a Marina Colasanti24, tinha assim todos os partidos estavam lá, misturados. E a gente viajava pra todos os lugares que nos chamava a gente ia, fizemos grandes eventos em Brasília.

Elizabeth Fleury (EF): E o lobby do batom?

(CA): Aí o que aconteceu o seguinte, claro que quanto mais a gente trabalhava, mais a gente se destacava, chamava atenção. No terceiro ano de funcionamento do Conselho eu fui a sua diretora. Certo? Eu fui em 1987. Eu cheguei em Brasília em fevereiro de 1987. Eu nunca tinha saído da universidade. Nem sabia o que era Serviço Público. (…) Aí eu fui pra lá e nós trabalhávamos muito juntas aos movimentos, foi uma uma experiência muito interessante. Por exemplo, vamos discutir emendas para o capítulo dos direitos trabalhistas: aí gente chamava os sindicatos, o movimento social. A gente tinha dinheiro e era incrível! Como realmente o dinheiro fazia a diferença, em boas mãos é claro… Então a gente trazia as pessoas, pagava as passagens, os movimentos também faziam 

vaquinha e era uma animação incrível. Nós ficávamos no quinto andar no Ministério da Justiça, então era um entra e sai de mulher e aquelas conversas. E as conselheiras, que eram muitas, a Branca25, um grupo da Jaqueline26 que ajudava a dar apoio na parte jurídica. Nós tínhamos várias conselheiras, na área de comunicação entravam muito a Marina Colasanti, Ruth Cardoso, sem dúvida. A gente chamava e elas vinham e tal.

Num belo dia… A gente sempre dizia que segunda-feira em Brasília era um dia de terror porque fica sábado e domingo sem nada, aí tudo parece que começa, todas as confusões começam na segunda-feira. Eu dava aula aqui na UFMG e sempre domingo à noite eu voltava pra Brasília. Retornava pra Minas na quinta à noite ou sexta de manhã e voava de novo pra o Distrito Federal no domingo.  Já ia direto de mala e tudo lá pro Ministério pra não perder nada. Estava lá todo mundo assim: “Celina, você não sabe o que aconteceu?!” Um jornal, na época eu acho que era o jornal mais importante do Brasília, o Correio Brasiliense, fez uma matéria falando que tem um novo lobby no congresso, o lobby do batom.

No primeiro momento nós todas tivemos medo da repercussão da notícia, achando que iam nos criticar – primeiro era o sutiã, agora era o batom. Mas tudo era resolvido no coletivo, isso era muito legal no Conselho. Nós ficamos numa sala discutindo e tal e pensando que tínhamos que resolver isso rápido. A coisa não pode ficar sem resposta nossa – nós temos que dar uma resposta que nos dê crédito. Aí não sei no meio da confusão, alguém falou… Eu lembro que era eu, a Schumann, a Maria Luísa Heilbourn27 que era uma antropóloga do Rio… Até que alguém falou: “Lobby do batom, isso mesmo, vamos criar o lobby do batom!”.

No início não foi um consenso firme até por parte das conselheiras. O medo de ficarmos ridicularizadas – mas éramos muito firmes, nós éramos bem ousadinhas. Vamos em frente. Vai dar certo. Deu tão certo. E o que nós fizemos? Na mesma hora, tinha um cartunista de Brasília importantíssimo, era o mais famoso da época, que agora eu esqueci o nome, nós o chamamos e dissemos: “Nós precisamos de uma marca, nós 

temos que sair com uma marca”. E ele fez uma marca fantástica! Um boton que ele pegava a forma, as linhas do Congresso Nacional e transformavam numa boca rosa choque. Lindo, lindo. E fizemos o boton. E aí quando tinha alguma coisa muito importante em votação no Congresso, ou reunião do conselho, todo mês as conselheiras vinham, conversavam, discutiam as linhas – isso aí foi dando a ideia do que era política pública, entendeu? Uma política de estado que é diferente de política de governo entendeu? Aí, eu não me esqueço: os botons ficaram prontos, nós pusemos e entramos no Congresso. Ah! Fomos aplaudidíssimas.  Foi assim um sucesso de comunicação como nós nunca pensamos. Foi superlegal. Olha foi um ano que eu digo assim, foi um dos anos mais intensos da minha.

(EF): E as conquistas obtidas na Constituinte?

(CA): Foram fantásticas porque nós chamamos especialistas pra todas as áreas. A divisão da carta era em capítulos, setores. E, ao mesmo tempo, em todas as áreas (seja na saúde, nos direitos trabalhistas, seja na área de creche, de direito de família), sempre a gente tinha uma publicação. Nós publicamos muito, mas muito, muito, muito. E as publicações eram todas bem feitas e tal. Fizemos uma publicação sobre mulher rural, sabe? Olha, Brasília era assim, tinha épocas em que você via o Congresso Federal invadido por mulheres. A única situação que a gente teve um embate (e foi muito pesado) foi com a questão do aborto. Porque aí entrou a igreja católica, eu me lembro de Dom Luciano28 fazendo aqueles discursos contra, outros famosos e tal. E eu aí vou contar um caso que é muito interessante também – a gente tinha os deputados, os senadores, que a gente procurava pra eles darem o aval nas nossas emendas. E aí a gente passava por um crivo de advogadas pra ver se estava tudo certo e tal. Então, na questão do aborto, nós fomos conversar com o Fernando Henrique29 – ele não vai se lembrar desse caso que é uma gota d'água, não é? Aí chegamos lá e me lembro que fui eu e a Madalena, do setor de saúde – havia as coordenadoras das áreas e eu era diretora geral. Aí chegamos lá no senador e tal, vamos ver se o senhor pode nos validar, nos encaminhar. Aaí ele disse: “Olha, eu sou a última pessoa, porque eu sou considerado a favor do aborto. Já fui acusado, já fui acusado de ateu, eu sou uma pessoa muito visada, que não vai agregar, vai até dividir o apoio de vocês. Mas você é de Minas?” Ele perguntou pra mim. “Pois é, tem uma pessoa em Minas que seria ótima.”

– “Quem? Célio de Castro?30 Que na época era deputado, e eu já tinha conversado isso com ele e também disse que não podia, que era muito visado, tinha que ser alguém assim, um exemplo. FHC explicou:  “Em Minas tem um deputado ótimo, fantástico, pai de família, tem filha, a mulher é médica, Pimenta da Veiga!31 Olha só, nós fomos atrás do Pimenta da Veiga. Porque alguém tinha que encaminhar a proposição; ele até encaminhou, mas perdemos, é claro. 

Então foi um ano de muito trabalho e de grandes conquistas. A lei do aborto que não tinham boas condições, a gente fez mais pra marcar uma posição, não é? Mas na área da violência, questão de estupro, da área da saúde, a questão das creches que foi muito combatida, a licença maternidade, a educação, nós entramos muito com a questão do gênero. Contamos muito com o apoio das conselheiras.

O movimento feminista aqui ele tomou uma outra característica mais voltada para questões específicas, sexualidade, violência doméstica, coisas que não eram tão faladas,  tanto quanto hoje. E eu acreditava… Tenho que dizer que fiquei desapontada, depois de um esforço tamanho que a gente fez e tudo… Quando você vê hoje, a situação da mulher, o feminicídio, uma coisa tão brutal, tão horripilante! Tem horas que eu penso: “Meu Deus, por quê?” E o que acontece que a gente não consegue quebrar essa estrutura tão cruel, tão perversa? Ao mesmo tempo, também fico muito feliz porque nós criamos a Delegacia das Mulheres – foi uma conquista grande, tudo era uma conquista; mas era uma conquista com muito, muito trabalho entendeu? Nada foi dado, tudo foi conquistado por nós. Que ninguém tente desmentir isso porque eu respondo à altura. Por exemplo, nós fomos introduzindo as cadeiras na pós-graduação sobre a questão feminina – nós fizemos o primeiro curso sobre mulher, fui eu e o Marcos Coimbra, ele era da Ciência Política e eu da Sociologia. O curso era lotado de homens e mulheres.

Mas tinha um time que era mais apropriado que eu, entendeu? Dedicavam-se mais ao SOS, que eram a Conceição Rubinger, a Ana Lúcia, uma psicóloga, a  advogada Elizabeth Almeida. Essas eram mais presentes. E eu fui me afastando e tal, aí de repente eu fiquei mais no mundo acadêmico, sabe?

 


 

1 Joseph François Pierre Sanchis (1928-2018), professor emérito da UFMG.

Claire S. Bacha é psicoterapeuta e professora em Manchester. 

Edmar Lisboa Bacha (1942-), economista, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras.

Bila Sorj, professora do Departamento de Sociologia da UFRJ.

5 Sheila Rowbotham (1943-), historiadora feminista foi professora da cadeira de Gênero, História do Trabalho e Sociologia na Universidade de Manchester, Inglaterra.

6 Betty Naomi Goldstein (1921-2006), ativista feminista.

Helena Grego (1916-2011) fundou e dirigiu o Movimento Feminino pela Anistia em Minas Gerais. Mais tarde foi a primeira vereadora eleita da capital mineira, nas eleições de 1982, e uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores (PT) na cidade. Teve participação ativa em praticamente todos os movimentos e lutas que envolveram o binômio direitos humanos e cidadania

8 MFPA, Movimento Feminino Pela Anistia foi a primeira organização a defender abertamente a anistia no país. A criadora do movimento, Therezinha Zerbini (1928-2015), era casada com o general Euryales Zerbini (1908-1982), um dos quatro oficiais-generais que resistiram ao golpe de 1964. O militar foi deposto do comando da unidade do Exército em Caçapava (SP), preso, reformado e cassado. Therezinha havia sido presa em 1970, acusada de apoiar a realização do congresso clandestino da UNE em Ibiúna (SP), em 1968. Passou seis meses no Presídio Tiradentes, onde foi companheira de cela da futura presidenta Dilma Rousseff (1947-).

9 Marisa Letícia Lula da Silva (1950-2017) foi a segunda esposa de Luiz Inácio Lula da Silva, metalúrgico, sindicalista e político, com quem teve quatro filhos.

10 Luiz Inácio Lula da Silva, 35º Presidente do Brasil (2003-2011).

11 Os assassinatos de Eloísa Ballesteros e Maria Regina Souza Rocha, duas mulheres de classe alta de Belo Horizonte que foram mortas por seus maridos em 1980.

12  Mirian Chrystus Mello e Silva, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG, uma das lideranças do movimento Quem Ama Não Mata.

13 Duas mulheres que foram assassinadas pelos maridos em 1980, em Belo Horizonte. Eloísa Ballesteros foi morta à tiros pelo marido Márcio Stancioli, enquanto dormia. Maria Regina Santos Souza Rocha foi morta pelo marido, Eduardo Souza Rocha, que desferiu seis tiros contra ela.

14 Ângela Maria Fernandes Diniz (1944-1976) socialite mineira que foi morta com três tiros no rosto por seu companheiro, Doca Street, um crime de grande repercussão.

15 Josefina Souza Lima foi morta pelo marido Roberto Lobato em 1971.

16 Maria da Conceição Marques Rubinger

17 Karin Ellen Von Smigay (1948-2011), professora aposentada do Departamento de Psicologia da UFMG.

18 Elizabeth Almeida

19 O CNDM foi instituído pela Lei 7.353 / 1985 com a finalidade de formular e propor diretrizes de ação governamental voltadas à promoção dos direitos das mulheres e atuar no controle social de políticas públicas de igualdade de gênero.

20 Maria Ruth dos Santos Escobar (1935-2017) foi atriz, produtora cultural e política.

21 José Sarney de Araújo Costa (1930-) é advogado, político e escritor, foi o 31º Presidente do Brasil.

22 Paulo Brossard de Sousa Pinto (1924-2015) foi deputado federal, senador, ministro da justiça e ministro do Supremo Tribunal Federal.

23 Ruth Vilaça Correia Leite Cardoso (1930-2008) foi antropóloga, professora universitária e 34ª primeira-dama do Brasil (1995-2002).

24 Marina Colasanti (1937-) é escritora, jornalista e artística plástica.

25 Branca Moreira Alves é formada em História e Direito. Foi Procuradora do Estado do Rio de Janeiro, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro e uma das responsáveis pela implementação do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher para o Brasil e o Cone Sul.

26Jaqueline Pitanguy, socióloga e cientista política. Foi presidenta do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher de 1986 a 1989.

27 Maria Luísa Heilbourn, pesquisadora da Fiocruz, tem pós-doutorado pelo Institut National d'Études Démographiques (INED; França). Professora Associada do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). Sua atuação privilegia estudos sobre gênero, sexualidade, família e juventude.

28Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida (1930-2006), foi um religioso jesuíta, Arcebispo de Mariana.

29 Fernando Henrique Cardoso (1931-), professor universitário, sociólogo e escritor. Foi o 34º Presidente da República Federativa do Brasil (1995-2002).

30 Célio de Castro (1932-2008), médico e político, foi deputado constituinte, deputado federal e prefeito de Belo Horizonte.

31 João Pimenta da Veiga Filho (1947-), advogado e político, foi deputado constituinte, deputado federal, ministro de estado e prefeito de Belo Horizonte.

 

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