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Em 1975, Ano Internacional da Mulher, nós estávamos vivendo aqui no Brasil a Ditadura Militar (1964-1985) em sua plenitude, de autoritarismo, de perseguição, desaparecimento de pessoas. Tanto que em outubro daquele ano foi assassinado, nas dependências do DOI-CODI,1 Vladmir Herzog.2. E nós, jornalistas do Jornal de Minas, Beth Cataldo,3 Beth Fleury4 e eu organizamos, nesta época, um ato de grande coragem, o seminário “Mulher em Debate”, no DCE da UFMG. 5

E como foi a história desse debate? O DCE vinha promovendo vários debates sobre as mais variadas questões. Tinha trazido Muniz Bandeira,6 Plínio Marcos,7 pra falar sobre a situação do Brasil. E nós levamos a proposta então de realizar um debate feminista. Para nossa surpresa, apesar do DCE ser dirigido por uma mulher, Samira Zaidan,8 eles não toparam promover o debate. Eles consideravam que não era interessante unir o nome do DCE ao feminismo. Por quê? Havia uma concepção, naquela época, de que todas as energias deveriam ser voltadas para a derrubada da ditadura. E nós feministas, nós considerávamos que era possível, era desejável, fazer as duas coisas: combater a ditadura, mas também discutir a questão da mulher. Nós preconizávamos que havia uma questão específica da mulher. Então, enfrentando essa resistência, mas mesmo assim o DCE, temos que registrar, emprestou as dependências.

Uma semana ou dez dias depois da morte do Herzog nós promovemos um debate de três dias no DCE, onde trouxemos para esse evento a Terezinha Zerbini, do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA),9 Branca Moreira Alves, irmã de Márcio Moreira Alves por quem o Congresso tinha sido fechado uns anos antes.10 E fizemos ali então três dias de debate sobre a situação das prostitutas, a situação da mulher rural, a questão da sexualidade, a história do voto no Brasil.

Esse debate teve o apoio importantíssimo, sem o qual não teria sido realizado, de Afonso Paulino11 proprietário do Jornal de Minas. Foi uma aliança muito perigosa que nós fizemos, uma estratégia muito perigosa, porque ele era ligado a extrema-direita – basta dizer que ele tinha uma sala no DOPS,12 com uma plaquinha “Sala Afonso Paulino”. Sala onde se realizavam torturas no DOPS mineiro. A gente montou essa estratégia. A gente manteve esse debate, ele patrocinou passagens de avião e hospedagem para todos os participantes no Hotel Del Rey – na época era o melhor hotel de Belo Horizonte. E, logo após o seminário, a gente fez uma escala de saída do Jornal de Minas. Vários colegas saíram imediatamente, uma semana antes de nosso seminário. Eu saí um mês depois de ter sido inclusive promovida a editora e a gente foi abandonando… Essa decisão de sair do Jornal de Minas foi tomada porque o jornal havia publicado, na primeira página, um editorial a favor da morte do Herzog. No texto se dizia que era uma luta e que dessa vez tinha morrido alguém de esquerda, e que provavelmente ele tinha se suicidado por pressão dos companheiros de esquerda. Um gesto de cinismo imenso do Jornal de Minas (…). Esse editorial mexeu profundamente com a redação e nós aos poucos, em poucos meses, todos nós saímos do jornal.

Logo depois do seminário, criamos um grupo feminista, um grupo de estudo e reflexão. Enfim, eu costumo dizer que a principal tarefa desse grupo foi ocupar um espaço 

discursivo. A gente se tornou referência e a gente ocupou espaço na mídia de maneira geral durante os 04, 05 anos com questões feministas. E ali nós adquirimos uma grande legitimidade por muitas de nós sermos jornalistas e por estarmos muito presentes e muito atentas à questão da mulher.

Em 1980 ocorreram duas mortes de mulheres de classe média alta, Maria Regina Souza Rocha e Eloísa Ballesteros, no espaço de 15 dias.13 Isso foi um tapa na cara da sociedade belo-horizontina. Houve uma comoção muito grande. E nós, que já vínhamos daquele debate de 1975, já tínhamos experiência nesse tipo de evento. Nós tivemos a ideia, ali na TV Globo, principalmente as jornalistas da Globo, de fazer um ato denunciando a violência contra a mulher, principalmente a questão das mortes – que não tinham nome, não era feminicídio,14 eram assassinatos de mulheres.

Elas foram mortas entre final de julho e agosto. O nosso ato foi 18 de agosto de 1980, no adro da Igreja São José. Não só a principal igreja de Belo Horizonte, mas um local onde se fazia atos políticos, em plena Praça Sete (….). Então nós feministas resolvemos fazer um ato no adro da Igreja São José no final da tarde.

Quando eu friso a questão da mídia é porque esse ato foi elaborado, planejado e organizado em 10 dias! Foi uma coisa assim muito rápida num tempo em que não existia internet. Nós divulgamos a ideia de fazer esse ato e a mídia divulgou muito nos dias que antecederam. Eu me recordo de dar entrevistas pedindo a participação das mulheres, pedindo que elas levassem flores, levassem velas porque eu tinha uma concepção que esse ato deveria ser um ato político-artístico. (….) Então o ato foi pensado como algo que fosse impactante, bonito. Daí a presença, nesse ato, de dois poemas, um da poeta Suzana Nunes de Moraes15, interpretado por Dinorah Carmo,16 atriz (mais tarde se tornou a primeira presidente de um sindicato de jornalista no Brasil), 

e “Aos homens nosso mel e nosso fel” interpretado por Beth Fleury,17 um poema da sua autoria. Onde falava que as mulheres são o jarro, o vaso que não demoram a derramar. E ali o vaso já estava derramando.

Enfim, esse ato então reuniu as vozes progressistas de Belo Horizonte contra a violência praticada contra as mulheres. Ele foi organizado como um ato para ser veiculado pela imprensa – muitas de nós éramos jornalistas e sabíamos da importância disso. Tanto que o horário desse ato marcado para as 19 horas, o auge dele foi a leitura do “Manifesto das Mineiras”, foi pensado pra entrar no Jornal Nacional. (….) Então foi uma estratégia, foi uma estratégia nossa de realizar um ato que tivesse a mais ampla divulgação possível!

Esse ato então reúne aspectos políticos, stritu senso partidário mesmo, e exibe esse protesto contra a violência praticada contra as mulheres. O ponto alto é o “Manifesto das Mineiras” onde o manifesto começa citando um poema anônimo da Idade Média onde o Senhor está partindo para as cruzadas. Ele entrega da chave do cinturão de castidade para sua Senhora. E o poema diz assim: “Senhora aqui está a vossa chave para que vos entregueis a quem quiserdes e quando quiserdes// Porque maior que a dor de vos perder é a dor de vos deixar presa nesses ferros”. Lendo o manifesto, eu dizia: “Em Minas, mil anos depois, os homens matam as mulheres que querem deles se separar”. Aí o manifesto continua e reivindica a redemocratização do país.

(…) Mas, enfim, o aspecto importante ali é que nós exigíamos a redemocratização do país, ao mesmo tempo em que alertávamos: “a democracia tem de começar dentro de casa”. A democracia não é só um espaço público, a democracia é um espaço doméstico. Então, este talvez seja o potencial enorme que esse ato teve. Essa organicidade de juntar arte e política, reivindicar a redemocratização do país e reivindicar o respeito à mulher e com a noção, como nós dizíamos: “(…) as novas ideias só serão absorvidas quando elas forem transmitidas através do leite materno”.

Durante a preparação do ato, que levou apenas 10 dias, ocorreram várias pichações em Belo Horizonte. Tinha uma que era muito interessante, eram uns triângulos pequenos e um maiorzinho, era uma menina, uma menininha conversando e tinha um que era assim: “Mamãe, o que é orgasmo?” E o triângulo maior respondia: “Não sei minha filha, perguntE pro seu pai.” Tinha esse tipo de pichação. Mas, a mais importante foi aquela 

pichação que apareceu no muro do Colégio Pio XII, que era o mais tradicional colégio de freiras de Belo Horizonte. Ali um anônimo pichou: “Se, se ama não se mata”. Uma letra rústica. Na minha cabeça é um homem anônimo, de pouca cultura porque “se” vírgula “se ama não se mata”, tinha essa sibilação, né? Então, em torno de uma semana, isso se transmutou para “Quem Ama Não Mata”.

(…) Nós tínhamos noção… Nós não íamos fazer um ato daquela magnitude pra se extinguir ali no adro da igreja. Não! Já havia a ideia de se criar um centro de estudos sobre a mulher e talvez acolhimento também da mulher. E o que aconteceu? Depois de 04 dias apenas da realização do ato, foi criado, no Sindicato de Jornalistas de Minas Gerais, o Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM), a princípio chamado de Centro dos Direitos da Mulher ou Centro de Defesa da Mulher. Esse CDDM ele era formado principalmente por sociólogas, antropólogas, algumas jornalistas, mas foram as sociólogas que deram o tom. Eu fui a primeira presidente, mas uma presidente temporária e depois a primeira presidente mesmo do CDM foi a Celina Albano.

O Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDM) foi responsável pela realização das primeiras pesquisas em Minas sobre a questão da violência [contra a mulher] em Minas Gerais. (….) Então ali você começa a ver a gestação das condições para se implementar as primeiras políticas públicas no enfrentamento da violência contra as mulheres. Porque sem dados, sem formação, sem conhecer a realidade, como que seriam gestadas essas políticas públicas? É ali que começa e mais do que tudo também, começa ali em 1980 a reivindicação pela criação das delegacias especializadas no atendimento de mulheres, que são criadas a partir de 1985. São Paulo cria a primeira e poucos meses depois Minas Gerais cria também a sua delegacia. É importante ressaltar a figura de Elaine Matozinhos18 não é? A primeira delegada à frente de uma delegacia, uma mulher muito forte. Aí você começa a ver a mudança no tratamento das mulheres, porque outra coisa que se constata nessas pesquisas, é que não havia interesse por parte de quem estava recebendo as denúncias nem de caracterizar os agressores! (…)

Então é um trabalho extremamente pioneiro em Minas Gerais, não tenho dúvida, mas principalmente, talvez também, em torno do próprio Brasil.

Em 2018, o que aconteceu? Em 2018, a gente começou a ver nos telejornais, nos jornais, um recrudescimento da violência contra a mulher, principalmente do crime, já com o nome de feminicídio.19 Havia dias em que duas ou três mulheres eram mortas. E entre essas várias mortes que foram chamando atenção de nós feministas e principalmente de nós jornalistas – porque nós jornalistas tivemos um papel preponderante em 1975, em 1980 e agora em 2018. A gente foi discutindo através do Facebook aquele tipo de situação e o auge disso foi o assassinato da advogada, da jovem advogada de 29 anos, Tatiane Spinitzer.20  Ela foi lançada de uma varanda pelo seu companheiro. Mas, mais do que isso, havia imagens de Tatiana, momentos antes, minutos antes, sendo agredida pelo marido na rua, na garagem, no elevador. Através dessas imagens a gente viu uma mulher caminhando para a sua morte.

Aquilo ali teve um impacto muito grande e nós, conversando no Facebook,  alguém disse: “Nós precisamos fazer alguma coisa. A escalada da violência está enorme”. E o porquê dessa violência que alguns se perguntam? Essa violência é a resposta patriarcal às nossas conquistas! Não há dúvidas!

(…) E ali naquele momento a gente teve essa ideia de recuperar o movimento que lá em 1980, no adro da Igreja São José, havia se manifestado contra a violência praticada contra as mulheres. Aí começa a preparação de um novo ato público, num momento completamente diferente – a gente estava às vésperas da eleição de 2018, uma batalha feroz pela presidência do Brasil com a extrema-direita já se organizando e com uma voz muito ativa. Então a gente começa a chamar as lideranças femininas e feministas.

Em 1975 nós tínhamos pouquíssimas vozes, femininas ou feministas. Em 1980 já tínhamos algumas, mas em 2018 o ato representou um momento completamente diferente, um momento histórico, completamente diferente em termos feministas. Ali no ato você teve a representação das trabalhadoras rurais, das associações das profissionais de sexo, do movimento feminista negro, o movimento das mulheres trans e tantos outros movimentos. Então a pluralidade de vozes estava presente.

 


 

1 Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, órgão subordinado ao Exército responsável por atividades de inteligência e repressão às pessoas que se opunham à Ditadura Militar.

2 Vladimir Herzog (1937-1975). Reconhecido mundialmente como um jornalista brasileiro que virou símbolo da luta contra a ditadura militar e a favor da democracia. Como jornalista e comunicador, passou pela TV Excelsior, Rádio BBC de Londres, revista Visão, agência de publicidade J. Walter Thompson, TV Universitária da UFPE, jornal Opinião e foi professor de jornalismo da FAAP e da ECA-USP. Pela TV Cultura, teve duas passagens: em 1973, a convite do amigo Fernando Pacheco Jordão, para coordenar a redação do jornal Hora da Notícia, e em setembro de 75, quando assumiu a Direção de Jornalismo. Vlado compareceu espontaneamente à sede do DOI-CODI, na Vila Mariana, em São Paulo, para depor. No dia anterior, uma sexta-feira, militares haviam procurado Vladimir na emissora. O próprio jornalista combinou que estaria disponível na manhã de 25 de outubro para o interrogatório. Ali, foi assassinado. Além da tortura e violência, forjaram uma falsa versão de suicídio.

3 Beth Cataldo é jornalista com foco na área econômica, trabalhou nas principais redações do país.

4 Elizabeth Maria Fleury Teixeira é socióloga, jornalista e poeta – pesquisadora da Fiocruz Minas, Instituto René Rachou.

5 Seminário “A mulher brasileira em debate”, organizado por estas jornalista e universitárias, no âmbito do Ano Internacional da Mulher promovido pela UNU. O evento aconteceu no DCE da UFMG de 04 a 06 de novembro de 1975

6 Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira (1935-2017), cientista político e historiador, especialista em política exterior do Brasil e suas relações internacionais.

7  Plínio Marcos de Barros (1935-1999), jornalista, escritor, dramaturgo e ator de teatro.

8 Samira Zaidan é professora da Faculdade de Educação da UFMG.

9 Therezinha Zerbini (1928-2015) articulou a criação do Movimento Feminino pela Anistia em 1975, foi a primeira organização a defender abertamente a anistia no país.

10 Branca Moreira Alves é formada em História e Direito. Foi Procuradora do Estado do Rio de Janeiro, presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro e uma das responsáveis pela implementação do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher para o Brasil e o Cone Sul.  Já seu irmão, Márcio Emanuel Moreira Alves (1936-2009) foi jornalista, cientista político, advogado e político. Teve o seu mandato de deputado federal cassado em 1968 pelo AI-5, por isso exilou-se no Chile, na França e em Portugal, só retornando ao Brasil após a instituição da Lei da Anistia em 1979.

11 Afonso de Araújo Paulino (1937-) foi um dos proprietários do Jornal de Minas (1973-1988). Era um empresário controverso, intimamente ligado à Ditadura Militar. Histórias sobre o Jornal e sobre Afonso Paulino podem ser vistas no livro “Jornal de Minas: Histórias que ninguém leu”, publicado pela Páginas Editora em 2018.

12 Departamento de Ordem Política e Social, criado em 1924 ainda no contexto da República Velha (1899-1930), foi intensamente utilizado durante as ditaduras do Estado Novo (1930-1945) e Militar (1964-1985).

13 Maria Regina foi morta pelo marido, o paisagista Eduardo Souza Rocha, com 6 tiros quando voltava da Academia. Eloísa Ballesteros era empresária do ramo de confecções e foi assassinada pelo marido, o engenheiro Márcio Stanciolli, enquanto dormia.

14 A palavra “feminicídio” foi usado pela primeira vez pela socióloga sul-africana Diana Russel em um simpósio realizado em 1976, em Bruxelas, Bélgica. Russel participava do Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres e sustentou a ideia de criar uma definição específica para homicídios praticado contra  as mulheres. Em 1992 escreveu o livro “Femicídio: a política de matar mulheres”, obra que inspirou Marcela Lagarde, antropóloga da Universidade Autonoma do México (UNAM), que em 1998 trouxe o termo à discussão na América Latina, ao descrever os assassinatos de mulheres ocorridos desde 1993 em Ciudad Juarez, situada no Estado de Chihuahua, no norte do México, na fronteira com a cidade de El Paso (Texas/EUA).

15 Suzana de Mello de Moraes (1940-2015), atriz, cineasta e diretora.

16 Dinorah Maria do Carmo, jornalista, atriz e crítica de teatro.

17 Elizabeth Maria Fleury Teixeira, jornalista, socióloga e pesquisadora da Fiocruz Minas – Instituto René Rachou

18 Elaine Matozinhos Ribeiro Gonçalves (1952-) foi a delegada da Polícia Civil de Minas Gerais responsável pela implantação das Delegacias de Mulheres e do Idoso. Foi membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher do Ministério da Justiça (1990-1993), Deputada Estadual (1999-2002) e Vereadora em Belo horizonte.

19 Feminicídio é um termo de crime de ódio baseado no gênero, mais definido como o assassinato de mulheres em violência doméstica ou em aversão ao gênero da vítima (misoginia). A autora feminista Diana E. H. Russell foi uma das primeiras a usar o termo e atualmente define a palavra como "a matança de mulheres por homens, porque elas são mulheres".

20 Tatiane Spitzner foi encontrada morta na madrugada do dia 22 de julho de 2018. Após o início das investigações a polícia encontrou imagens do circuito de segurança do prédio, onde Tatiane morava com o marido, Luís Felipe Manvailer, que mostravam Manvailer agredindo a esposa. As investigações concluíram que Manvailer matou Tatiane e jogou o corpo da sacada do apartamento em que moravam para forjar um suicídio.

 

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