Vermelho Carmim

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Elizabeth Fleury (EF): O que você foi fazer na Europa? Em que época foi isso?

Otilie Pinheiro (OP): Eu fui em 1974 para França. Uma experiência de aventura, só com a passagem de ida, $800 dólares, sem falar francês. Mas era uma insatisfação muito grande, eu não tinha consciência política, uma insatisfação política e todos os amigos indo embora. Eu morava com duas amigas [em São Paulo] – uma foi para os EUA e a outra para a Espanha.

Eu já tinha me formado em 1971 em Arquitetura e fui morar em São Paulo. Depois de um tempo eu não queria ficar mais em São Paulo e um amigo, José Otávio Cavalcanti, estava na França, em Paris, e começou a me escrever e me contar sobre a França. E eu fui. Foi uma grande aventura!

Depois de um tempo eu me inscrevi na faculdade e lá eu tive contato com um grupo de esquerda brasileiro – mas, aos 27 anos, eu era ainda muito ignorante politicamente. Eu morava com uma francesa e ela reunia os amigos em casa – eles apoiavam a Guerrilha do Araguaia no Brasil e me perguntavam sobre, acontece que eu não sabia nada. Pelo interesse de responder os franceses, fui me aproximando da esquerda brasileira em Paris. Mas tinha muito desconfiança, porque sempre havia os infiltrados… Uma das formas de aceitar novos membros era levar as mulheres para o círculo de mulheres brasileiras que tinha sido constituído lá em 1975. Aí eu entrei para o círculo.

(EF): O que era esse círculo?

(OP): O grupo era constituído por refugiadas brasileiras. Era um grupo muito grande. E de várias correntes da esquerda brasileira, esse grupo apoiava o Movimento Feminino Pela Anistia, apoiava os jornais feministas Brasil Mulher, Nós Mulheres. Apoiávamos esses jornais escrevendo matérias, artigos, enviávamos informações, às vezes até arrecadávamos dinheiro, enviando auxílio financeiro para esses movimentos.

Ao mesmo tempo, já na França, começamos a participar de todas as ações do movimento feminista francês. Era de uma riqueza – muitas manifestações de rua, colocando claramente que as questões das mulheres eram esquecidas! A questão da mulher tinha um aspecto diferente.

Tinham coisas engraçadas, por exemplo, músicas de manifestações como no primeiro de Maio que falavam assim: “Um passo para frente, um passo para trás”. Aí as mulheres criaram: “Um passo pra frente, um passo pra trás, um passo para esquerda e um passo para a direita”. Participávamos também de movimentos da esquerda latino-americana. Formou-se também o coletivo das latino-americanas e nós participávamos disso tudo.

(EF): Foi uma grande descoberta na tua vida?

(OP): Foi uma descoberta total! Foi marcante. Minha vida é antes e depois de Paris.

(EF): Você se lembra de alguns daqueles slogans que as francesas criaram?

(OP):O nosso corpo nos pertence” fazia parte da luta pelo direito ao aborto, era uma das lutas mais fortes. Era um slogan muito forte. Estou me lembrando agora das espanholas, eu vi uma coisa em Barcelona, depois da morte do Franco: “Contra la violación, la castración!”; “Mujeres violadas, picas cortadas!”.

(EF): Qual foi o seu grande aprendizado nessas lutas?

(OP): Acho que uma das coisas mais interessantes eram as conversas, as trocas de experiências, todas diferentes, mas presas naquela visão de mulher. Além disso, a consciência, a tomada da consciência política. Uma espécie de educação política muito forte.

(EF): Que costumes eram esses que nos aprisionavam?

(OP): Eu acreditava que iria ser solteirona, porque fui para a França com 27 anos e virgem! O que era raro. A tomada de consciência dessa repressão feminina: eu fui educada pra ser moça de família. Eu fugia do padrão, porque eu ainda respeitava essas regras: casar virgem, namorar e só pegar na mão, nem beijo era permitido! E eu respeitava. Além disso, aprendi todas as prendas domésticas: cozinhar, costurar, receber. Fui educada para ser uma boa esposa.

(EF): E sua volta ao Brasil?

(OP): Eu cheguei na França em 1974 e voltei em 1980. Fiquei lá no mesmo período que os refugiados. Quando eu entrei em contato com a esquerda brasileira, eles acharam que eu era da polícia! Porque eu fazia várias perguntas sobre a Guerrilha do Araguaia, por exemplo. Na realidade precisávamos preparar a volta. Dentro do grupo do círculo, havia um pequeno grupo em que nós começamos a trabalhar nossa volta e para criarmos um centro de informações da mulher. Recebemos muito material, fizemos festas para arrecadar fundos, livros, materiais. E esse centro foi construído em São Paulo. Era tipo uma biblioteca com todo esse material – recebíamos material de todas as partes do mundo sobre o movimento feminista, sobre as mulheres.

Quando retornei, fui para Belo Horizonte. Uma amiga, Maria Betânia, foi para Recife e criou o SOS Mulher, que até hoje existe, muito forte e atuante. Outras foram para o Rio de Janeiro. Cheguei em Belo Horizonte em 1980, em Março. Eu tive notícia do evento na escadaria da Igreja São José [Ato QuemAmaNão Mata]. Não estive lá, mas eu vi a notícia. Aí eu soube a respeito do grupo de mulheres e fui procurar o grupo. Foi a partir daí que fiz parte do grupo que criou o Centro de Defesa dos Direitos da Mulher.

(EF): Você sabe que esse símbolo [a logo do CDM] fui eu que pedi a Ângela para fazer?!

(OP): Então esse grupo, a maioria eram ligados a Universidade [UFMG] – a Celina Albano, a Conceição Rubinger. Aí passei a ser referência em alguns pontos, especialmente no caso daquelas manifestações que tinha visto em Paris, como a questão do aborto. Lembro-me de uma coisa muito marcante. Uma vez fui a um programa do Flávio Cavalcanti em que fui discutir sobre o aborto com um Bispo. Outro fato foi quando um grupo da Faculdade de Farmácia de Ouro Preto me chamou para debater sobre o aborto. Quando chego a Ouro Preto, a cidade cheia de faixas falando sobre a palestra. E veio um grupo de prostitutas contra o aborto. A gente participava e éramos muito chamadas para reuniões em sindicatos, escolas. Éramos as feministas de plantão.

Em 1980, em julho, acontecem os assassinatos da Eloísa Ballesteros e da Maria Regina. Com diferença de quinze dias. Duas donas de casa, mãe de família, de boas famílias. Abalou todo mundo. Aí vocês fizeram aquele ato na Igreja, que teve repercussão nacional. E de represente esse assunto se transformou no grande tema.

Eu estive no julgamento de Doca Street em Cabo Frio, eu fui a representante civil. Éramos três que revezávamos durante o julgamento. A gente chegou de ônibus, levamos faixa e começamos uma passeata – do ponto onde chegou o ônibus até o tribunal.

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