PEDRO PAULO CAVA
Pela vida e pela arte
Rasga Coração (1984); Bella Ciao (1986); Lua de Cetim (1987); Mulheres de Holanda (1998/2007); Estrela Dalva (2002); Palavra Possuída (2006); Brasileiro, Profissão Esperança (2009) Morte e Vida Severina (2011); Intimidade Indecente (2017). Uma pessoa pode ser definida por muitas coisas e estes espetáculos teatrais, sem dúvida contam parte da história desse diretor mineiro com mais de 50 anos dedicados ao teatro. Ademais disso, um cidadão dedicado às lutas sociais e políticas de seu tempo, Pedro Paulo Cava também apoiou desde sempre as lutas feministas, ainda nos anos 80 em Minas. Sobre estas vivências, Cava relembra nesse vídeo, analisando momentos históricos do país e suas lembranças do espetáculo em praça pública que dirigiu em 1983 – “A Honra ou a Vida”. Ao lado disso, criou uma peça de teatro para nosso site, com texto escrito pelo dramaturgo e neurocirurgião Jair Raso e a psicóloga Andrea Raso, discutindo o comportamento dos homens autores de violência. “Vermelho Carmim – Fragmentos do Discurso Violento” está disponível também aqui.
(…) Evidentemente que os anos 1970 foram muito importantes como marca de ruptura de muitos costumes, muitos parâmetros, muitas convenções. Então é criado aqui em Belo Horizonte um Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) e esse MFPA (1), comandado pela dona Helena Greco (2), era um grupo grande de mulheres que agrega alguns cidadãos, alguns homens no movimento.
Ali tinham várias feministas dentro desse MFPA, 1976 e 1977. E aí o que acontece? Eu me integro nesse movimento para de alguma maneira ajudar. Eu tinha uma companheira que era desse movimento e eu ia a algumas reuniões, eu ia muito à casa da dona Helena Greco, conversar com ela – era sempre muito bom. E a gente vai chegando perto do movimento feminista, de alguma maneira – ali fico conhecendo várias feministas. Além de já ter namorado uma feminista terrível, que era assim radical. Ora, então eu cheguei num ponto da minha vida que eu estava envolvido, essa reunião de 1975 no DCE eu estava lá (3). Eu assisti essa reunião.
(…) Depois, em 1980, vem esse movimento também do Quem Ama Não Mata (QANM). Em 1983, a Celina Albano (4) que era a presidente do Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM) – que é o embrião do Conselho Estadual da Mulher, que mais tarde se torna institucional – me convida pra realizar um espetáculo, que intitulamos “A Honra ou a Vida”. E que tinha como subtítulo “QuemAmaNãoMata”. Ela me convida pra fazer esse espetáculo baseado nos autos de vários julgamentos de homens que ganharam sua liberdade através dessa tese que era a legítima defesa da honra. Na interpretação dos advogados de defesa dos homens que assassinaram suas esposas, a mulher traiu, ofendeu a honra do cidadão. Ele matava em legítima defesa da honra – era absolvido com essa tese. Vários grandes advogados, grandes juristas defenderam essa tese e conseguiram livrar cidadãos que mataram suas mulheres. Enfim, o caso estava ficando grave porque não era só na periferia, não eram só as mulheres pobres que estavam morrendo. Essas nem eram notícias de jornal. Passou a ser notícia de jornal, e até nacional e internacional, porque as mulheres que estavam sendo assassinadas eram muito ricas, de alta sociedade, de famílias muito boas.
Então, nesse momento específico (1980), aconteceram vários crimes aqui em Belo Horizonte e todos [os acusados] conseguem ser absolvidos por essa tese da legítima defesa da honra. Foi um momento muito específico nessa história (5). E a Celina Albano me passou, naquele dia, os autos de um desses julgamentos. Os autos não eram totais, mas os autos finais – enfim, aquela parte da defesa e da promotoria que tem aquele debate (réplica, tréplica, etc, etc). Na gente deveria escrever um texto sobre isso.
Então o que eu pensei em fazer foi exatamente o que a Escola de Direito (6) sempre fez: um júri simulado, só que [resolvemos fazer] ao ar livre. E chamei a Thais Guimarães (7), poeta muito jovem, pra me ajudar a escrever. (…)
E nós fizemos esse espetáculo na escadaria da Igreja São José às 17 horas de um dia qualquer, com mais de 5 mil pessoas, parando o trânsito ali na Afonso Pena. Essa é que é a verdade! (…)
Vale lembrar que, naquele momento, aquela escadaria não tinha grade como tem hoje, com fechamento da porta. Então a gente chegou e ocupou o espaço. Nós fizemos uma ocupação – montamos uma grande mesa como cenário do julgamento e criamos as personagens que eram, na verdade, personagens dos autos: o réu, o promotor, o advogado de defesa, as testemunhas. E colocamos o espetáculo no palco ao ar livre, num dia qualquer, às 17 horas, com gente saindo pelo ladrão, pelas escadarias, pela rua -paramos ali o trânsito da Avenida Afonso Pena.
Os atores eram figuras conhecidas do público de teatro mineiro: Bernardo Mata-Machado (8), Elvécio Guimarães (9), nosso querido Elvécio que faleceu em 2016. Miguel Rezende fazia o réu; Glória Melgaço fazia uma testemunha e Luciano Luppi (10) também fazia uma testemunha. Então esses atores deram cor, forma e expressão a essa coisa muito chata que é um júri simulado, mas que passou a ter uma cor muito diferente feita por esses atores. Quer dizer, eles tinham uma interpretação diferente do que poderia ser um júri simulado feito por alunos da Escola de Direito e também eram atores muito preparados que sabiam lidar com as palavras e com a ênfase, com a interpretação. Esse foi o espetáculo. (…)
Bom, ao ser anunciado esse espetáculo, soube-se que seria a respeito de um julgamento de uma pessoa importante na sociedade de Belo Horizonte (11) – nós estamos falando de uma Belo Horizonte ainda muito provinciana. Saiu uma notícia de que esse espetáculo seria realizado baseado nos autos de um determinado cidadão que tinha sido absolvido. A imprensa então se negou a divulgar, como se negou a filmar, se negou a fotografar, a imprensa local, toda a imprensa, televisão, rádio, jornal, não apareceu ninguém. Por consequência também e por inadvertência, nós também não tínhamos um fotógrafo que registrasse tudo. Nós nos esquecemos de contratar uma foto.
(…) Eu não me lembrava de nenhum registro, eu só lembrava do registro da transmissão oral que todos nós fizemos daquele momento, porque foi muito emocionante. O público aplaudiu aquilo de pé. As personagens acabaram tendo alguma espécie de interação com a plateia – o advogado de defesa foi vaiado, o réu foi vaiado. Então a plateia nem reconhecia como personagem, achava que aquilo era verdadeiro, era uma plateia gigante.
(…) A emoção com que esses atores estavam falando esse texto que nós construímos era mais importante do que qualquer movimento [de palco] que pudesse ser feito.
Aí o que acontece? Nós não tivemos esse registro [em fotos]. Passaram muitos anos, um dia eu estava no Teatro da Cidade, entrou uma moça – estava ali assistindo um espetáculo – me procurou. E fez menção ao “A Honra ou a Vida – Quem Ama Não Mata”, dizendo: “Eu assisti. Estava morando na Itália e vim ao Brasil. Sou fotógrafa e eu fotografei aquele espetáculo. Você tem fotos?” E eu disse: “Nenhuma.” Aí ela disse que iria me mandar. Essa moça chama-se Isabel Lima. Isso foi no final dos anos 1990. Eu agradeci demais, fiquei super feliz. Ela de fato mandou um envelope, dias depois, com as fotos impressas – nove fotos. Ali estava registrado o momento que nós vivemos tão intensamente e do qual não tínhamos qualquer registro. As fotos não possuem uma clara definição porque elas foram feitas de longe, mas pega uma boa parte da plateia, mostra a rua, toda a escadaria e os atores. Esse é o registro que faltava para aquele momento que eu acho importante. Não só na minha vida, mas imaginem, era uma meninada assistindo aquilo! Tinha muitos jovens porque ou estavam saindo de colégio, indo para escola ou vieram da universidade. Tinha gente com mais idade mas, no geral era um público essencialmente muito jovem assistindo aquilo. Fiquei surpreso e muito feliz de ter esse registro e poder compartilhar com as pessoas hoje, tantos anos depois.
Então, estamos aqui tentando rememorar, relembrar, não é? Contar histórias, nem que seja de forma oral e com a narrativa que cada um faz com o seu olhar ou a sua vivência. Acho muito importante porque Belo Horizonte precisa ter essa memória das coisas que aconteceram. Inclusive porque muita coisa não tinha divulgação porque nós estávamos numa Ditadura – não só a imprensa filtrava, mas os censores que estavam dentro das redações de jornal, censores da Polícia Federal, eles também filtravam isso aí – não deixavam sair muitas coisas.
A censura, na verdade, ela começa no Brasil em 1968 e ela é institucionalizada depois do AI-5 (12). Antes de 1968, havia um deles que não censurava muita coisa e ficava ligado à delegacia de jogos e diversões da Polícia Civil. E, em 1968, o governo da Ditadura cria o departamento de censura da Polícia Federal, faz um concurso para advogados em Brasília e abastece esses advogados com cursos de arte. São coisas que ninguém sabe – detalhes da vida brasileira daquela época. Então, esses advogados que passaram nesse concurso pra censor, eles receberam cursos de música, de teatro, de dança, de literatura, pelos professores mais renomados das universidades brasileiras. Estes eram obrigados ou intimados, ou gostariam de ir pra lá dar aula em Brasília pra esses censores. Eles fizeram um ano inteiro (1969) de cursos e foram sendo mandados para as cidades ou para as regionais da Polícia Federal nas capitais – isso pra estabelecer o serviço de censura do Governo Federal. E essa censura passou a ser terrível. Ao mesmo tempo muito dependia também do estilo de cada censor que aparecesse.
Com o passar do tempo, a Ditadura percebeu que não poderia manter o censor em Belo Horizonte que fosse daqui mesmo. Nem lá em Manaus quem fosse de Manaus. Porque as pessoas tinham ligação com os artistas, tinham alguma ligação afetiva. Então o que é que começaram a fazer? Pegaram o cara de Manaus, mandaram pra Belo Horizonte; pegaram o cara de Belo Horizonte, mandaram pra Pernambuco. Por exemplo, o censor daqui era o Leopoldo Portela, sambista velho da escola de São João Del-Rei… Ele ficava muito constrangido de censurar os amigos todos que ele conhecia. Ele então saiu da censura e continuou na Polícia Federal – era um agente da Polícia Federal. E era uma figura muito engraçada o Portela, falava assim: “Gente, por favor, não me comprometam. Vocês estão me comprometendo! Vocês são meus amigos. Tira essa coisa aqui.” Aí ele não aguentou isso aí, não deu resultado. O que estou tentando explicar é que a censura da ditadura foi científica, cirúrgica. Ela censurou 480 textos teatrais nesse período todo da censura. Mais de 1.500 músicas, praticamente toda produção cinematográfica brasileira nesse período teve cortes.
Então, em 1983 ainda havia essa censura horrorosa toda. Por sorte, nós passamos direto, sem passar pela censura, pra fazer esse júri simulado em praça pública. Fomos pra rua e fizemos! Isso pra mim foi sensacional porque todo espetáculo que a gente fazia tinha que passar o texto pela censura de Brasília e o ensaio geral pela censura local. Muitas vezes o texto era liberado em Brasília; chegava aqui, o censor local vetava o espetáculo. Era uma coisa muito louca! Porque isso dependia da cabeça de cada um. Se o censor daqui não gostasse de uma cena, considerasse imoral ou um atentado à Ditadura, os militares ou qualquer coisa assim, ele cortava.
Por esta razão, a metáfora permeava basicamente a criação artística, especialmente no teatro. Então se usava muita metáfora porque o público entendia, através desse recurso, o que a gente queria dizer sobre o Governo Militar, sobre a Ditadura, sobre isso que estava acontecendo no Brasil. Então, claro, naquele momento, também usamos algumas metáforas, mesmo que a essência da “A Honra ou a Vida” não fosse uma essência política. A gente queria realmente demonstrar que essa tese da legítima defesa da honra era um aborto jurídico, era uma coisa louca. Queríamos mostrar que isso não estava nem no código penal; isso foi invenção de juristas (13). E eram grandes juristas pagos a peso de ouro pra defender seus clientes – não só em Minas Gerais, mas em outros estados. Essa tese pulverizou e deu liberdade a muitos assassinos de mulheres naquele momento.
Então eu sou muito grato, por exemplo, a todo o pessoal do Centro de Defesa dos Direitos da Mulher por ter me dado a oportunidade de fazer esse trabalho. Quer dizer, o trabalho foi o quê? Eram 45 minutos somente de julgamento – mas isso nunca saiu da memória de quem fez. Às vezes também não sai da memória de quem assistiu! Por exemplo, eu já encontrei pessoas na rua que falaram: “Eu assisti aquele trabalho sobre aquele julgamento lá na escadaria da Igreja São José!”. Então esse foi um marco, um evento importante na trajetória do movimento feminista em Minas Gerais, em Belo Horizonte especialmente.
Na verdade o que aconteceu? Esse contexto todo político do Brasil, debaixo dos governos militares, era constrangedor pros artistas, mas também era desafiador. A gente tinha que vencer isso de alguma maneira e a gente tentou. A verdade é que muitas vezes a gente venceu, muitas vezes a bulamos a censura. E estou falando isso tudo porque o movimento feminista também nasce exatamente nesse momento aí da Ditadura. O surgimento do QuemAmaNãoMata e tantos outros movimentos de outras coisas acontece ali. Ah e por quê? Porque era preciso resisti à Ditadura.
MIRIAN CHRYSTUS
NELY ROSA
RODRIGO DA CUNHA PEREIRA
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PEDRO PAULA CAVA
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