Vermelho Carmim

logo001

CONCEIÇÃO RUBINGER

Os primeiros estudos sobre violência contra mulheres

Recém-casada, aos 19 anos, Conceição vivenciou seu marido, professor Marcos Rubinger, da Faculdade de Economia da UFMG, ser preso em casa, nos primeiros dias após o golpe militar, em 12 de abril de 1964, e ser mantido incomunicável no Dops de Belo Horizonte. Ela não se intimidou e lutou por seu habeas corpus, que não conseguiu. E, após um ano da prisão, diante da ameaça de desaparecimento e tortura, promoveu sua fuga do país. Começava um período de exílio na Bolívia e no Chile. Também no Peru e na Suíça. No exterior teve duas filhas. Regressando ao país em 1966,graduada em ciências sociais chegou a Diretora Geral do Departamento de Administração  de Pessoal na UFMG. Com a morte do marido, após uma forte depressão, começou a envolver-se com o feminismo. Seu terceiro filho nasceu no Brasil. A partir de 1980, participou ativamente do recém-criado Centro de Defesa dos Direitos da Mulher, principalmente no SOS Mulher, atendendo e orientando mulheres agredidas por seus companheiros.

Mirian Chrystus (MC):No Brasil, quando volta do exílio, você militou na área de direitos humanos. Como foi transitar da política ampla dos direitos humanos para o feminismo?

Conceição Rubinger (CR): A questão dos direitos humanos já estava super presente pra mim. Marcos [Rubinger, antropólogo e seu marido] estava preso, e estávamos numa batalha. Eu participava de tudo! Fiz a denúncia de tortura que ele o Simon Schwartzman (1) sofreram lá dentro – discriminados como porcos judeus. Eu fiz uma representação internacional.

(…) Só que acontece o seguinte: quando uma pessoa se posiciona assim, buscando uma transformação da sociedade, de todos, eu não poderia nunca esquecer a mim mesma, como mulher. Eu sabia de coisas quando era pequena, de mulheres que apanhavam dos maridos – desde pequena ficava brava. Então pra mim isso foi assim uma beleza. Você nem imagina, depois de viver essas coisas todas, eu entrar no movimento feminista. Nossa, aquilo abriu um horizonte –  fiquei feliz. Pra mim era uma alegria fazer aquelas coisas todas.

(MC): Como se dá sua contribuição ao Centro de Defesa dos Direitos da Mulher?

(CR): (…) Em Belo Horizonte, a casa da rua São Paulo não entrou no apoio da [Fundação] Ford. Éramos nós mesmas que cotizávamos e pagávamos o aluguel. Mas a Casa do Jornalista abriu seu espaço para nós e descortinou pra gente muita coisa. Na minha experiência, primeiro começamos na [Faculdade de] Direito, depois na Casa do Jornalista e depois fomos pra rua São Paulo. Eu participei na Faculdade de Direito de duas ou três reuniões.

Naquele momento a Celina Albano (2) arrumou uma pessoa, não sei se era psicanalista, era uma pessoa que ela conhecia muito – então ele fazia um trabalho conosco.  Esse foi o primeiro encontro – foi um trabalho para nos envolver e nos relaxar. Depois esse profissional ia chamando uma por uma e fazia perguntas pra ver como a pessoa tinha se sentido depois do relaxamento, o que tinha pensado. E cada uma falava sua experiência. Essa foi a primeira vez que eu estive no grupo, ainda na Faculdade de Direito. Eu não participei na Casa dos Jornalistas, eu era fresquinha no movimento – mas conhecia as pessoas na UFMG, onde eu trabalhava. A Celina era minha contemporânea.

O estatuto foi redigido na Casa do Jornalista, o SOS-Mulher começou a atender na Casa do Jornalista. E o SOS fazia parte do grupo da violência. Depois a pesquisa foi tomando muito nosso tempo. O SOS já foi ficando um pouco mais por conta do grupo de advogados e estudantes de Direito. Por isso que, na etapa de levantamento para a pesquisa – informações a respeito do processo vivido para se fazer uma denúncia, pra abrir um inquérito -, a gente viu que a mulher passava por uma segunda violência.

(MC): Ali começa a reivindicação pra criação das delegacias das mulheres?

(CR): Sim, nós já estávamos pensando nisso. Só em São Paulo as feministas não encontraram nenhuma resistência. Nós [em Minas] conseguimos ter a Delegacia da Mulher no segundo semestre de 1985 (seis meses depois das paulistas). No início nossa delegacia funcionou na Lagoinha, onde era a Delegacia de Costumes. A delegada Elaine Matozinhos (3) foi pra lá e fez um trabalho muito bom.

(…) Nossa pesquisa buscou entender como é que eles [os funcionários da delegacia] lidavam com todo esse processo, qual era a percepção que eles tinham da problemática da mulher – os agentes de segurança, dentro das delegacias. Nós começamos a ler uma pesquisa feita pelo [Antônio Luiz] Paixão (4), que era professor da FAFICH, sobre a questão da criminalidade e violência. Ali ele narra o que nós vamos constatar depois, na versão feminina. Ela é transformada em ré lá dentro. Um deboche. Por isso que a Secretaria de Estado de Segurança Pública não nos permitiu entrar nessas delegacias para fazer os levantamentos.

Tem uma caminhada interessante, porque o recém-criado Conselho Estadual da Mulher (CEM) pede ao Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDM) a indicação de uma pessoa que estivesse trabalhando na área da violência pra fazer parte da comissão. Inicialmente eu fui a indicada pela Bila Sorj (5) que era a presidente do CDM na época. Fui pra primeira reunião e lá estava a uma integrante falando da Secretaria de Segurança Pública – dizia que não ia nos deixar fazer a coleta de dados e a também a observação sociológica porque a Dra. Merli já fazia isso. Quando vimos, ela simplesmente colhia os dados da polícia. Nessa primeira reunião do CEM eles propuseram então que de todos os grupos ali, o CDM fosse escolhido por esse grupo para realizar esse trabalho, porque a gente já tinha até projeto elaborado. A Dra. Merli viu que a criminalidade geral não ia nunca atender o que nós precisávamos. Já que a gente não podia nem entrar no espaço físico das Delegacias – ou pedir que a gente tivesse uma sala, colocasse lá o material, os dados; não aceitaram. Felizmente nós pegamos um pouquinho dos dados antes, ainda na Delegacia de Costumes e, pouco tempo depois, com a Dra. Elaine Matozinhos… Aí tivemos acesso. Finalmente as portas se abriram, tivemos acesso aos dados, fizemos entrevistas. Foi possível acompanhar a formação dos inquéritos, como eles lidavam. Raramente o autor [do delito] era procurado pelos policiais. Inclusive conosco falaram assim: “Você não sabe o que é. Você é casada? Se não foi, você não sabe. Vai casar pra você ver. Nenhum homem respeita a mulher!”

Inclusive no início [da implantação das] Delegacias de Mulheres mantiveram as mesmas pessoas – os escrivãos, as mesmas pessoas que montavam os inquéritos antes. E nós falamos com Elaine Matozinhos: “Não é possível manter isso.  Ainda não nasceu a delegacia da mulher, porque ainda são os mesmos costumes”. Aí ela começou a mudar todo o funcionamento e trouxe outras pessoas de outras delegacias – ela mudou o grupo. Mas a gente ainda via que o movimento de mulheres, o CDM ainda tinha papel na formação dessas pessoas, porque a realidade era distorcida. A mulher chegava lá, a maioria jovens que tinham sido estupradas, eram tratadas de uma forma totalmente desrespeitosa. E isso tudo está registrado [no relatório da pesquisa].

(MC): Quais foram as principais contribuições dessa pesquisa? Parece que foi uma das primeiras do Brasil…

(CR): A primeira coisa foi quebrar o silêncio a respeito desse assunto – violência praticada contra mulheres. E, finalmente, a gente ter dados para confirmar a fala que a a gente estava veiculando por vários meios – entrevistas, escrevendo artigos, fazendo pesquisa, participando de eventos. Nossa palavra tinha respaldo nesse levantamento, nesse trabalho.

 

 

(MC): Fale um pouco sobre a participação da Fundação Ford.

(CR): Eu acho que foi importante o encontro com a Patrícia [representante da Fundação Ford presente ao seminário] lá no Peru – ficamos no mesmo grupo todo o tempo. Foram três ou quatro dias e tivemos uma participação muito forte no grupo. Tive acesso a conversas, troca de ideias… Fiquei sabendo como era o funcionamento da Fundação Ford.  E, como eu trabalhava em um setor desses na UFMG, de elaboração de projetos e captação de recursos, então a antena já ligou. Daí, apresentamos os projetos, não voltou nenhum.

No relatório final tem a parte de todo o projeto e tem a parte financeira. Nós não tínhamos nem uma cadeira pra sentar, nem nada. Esta organização internacional financiou o aluguel da sala que tínhamos na rua São Paulo, o pequeno mobiliário necessário para os trabalhos, arquivos. Assim contratamos secretaria, compramos máquina de escrever. Ou seja, pagou todo esse pessoal, até os estudantes que iam como auxiliares na coleta de dados, cuja participação foi colocada pra Ford como importante – que tivesse pelo menos dois ou três estagiários. Eles também têm esses critérios na linha de financiamento: incentivo para o desenvolvimento e formação de recursos humanos na pesquisa.

(MC): Passados tantos anos, 40 anos disso tudo. Como você vê a questão da violência da mulher hoje?

(CR): Mesmo tendo as delegacias e outros órgãos que dão apoio, não é suficiente. O que sustenta tudo isso é o movimento de mulheres. Esse é o fator que dá o calor da coisa. Não foi pouco o que foi criado nesse tempo. O CDM fecha as portas, entregamos a casa, a gente termina a pesquisa, entrega a sala e as coisas começam a esmorecer. Precisa disso!

 (…) Muito interessante, porque agora, no momento em que eu estava decidida a pegar todas as coisas e doar e falar assim: “encerrei”. Agora estou toda entusiasmada de novo. O trabalho não acabou. Tem muito por fazer. Eu acho que esse material todo, por exemplo, o último projeto foi robusto. Ele trouxe muita coisa, muita reflexão. Então ficou inédito o resultado desses dois projetos de pesquisa. Só quem tem isso é a Fundação Ford e a gente.  Isso precisa chegar, a gente tem que pegar esses dados, e nós também não esperarmos as pessoas procurarem, fazer algumas exposições, encontros, bate-papos, reunir todos os grupos. Fazer uso dessas coisas. Eu acho que precisa isso entrar num website, mas também ser publicado. Os dados estão à disposição.

(MC): Olhando pra trás você se sente orgulhosa da sua contribuição?

(CR): Eu não sei, Mirian, eu me sinto feliz. Eu me sinto feliz de ter participado (…).  (…) a minha consciência está contente da gente ter dado uma quebra nesse silêncio na questão da mulher e termos tido a coragem de ir pras ruas.


NOTAS
  1. Simon Schwartzman (1939- ). Simon é pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade no Rio de Janeiro. Estudou sociologia, ciência política e administração pública na Universidade Federal de Minas Gerais (1961); tem um mestrado em sociologia pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO), Santiago do Chile (1963); e Ph.D. em ciência política pela Universidade da Califórnia, Berkeley (1973). Foi professor da Universidade Federal de Minas Gerais, tendo sido afastado pelo golpe militar de 1964 e reintegrado em 2000, quando se aposentou.

  2. Maria Celina Pinto Albano (1944 – )- Graduada em Sociologia e Política pela Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (1967); Doutora em Sociologia pela University of Manchester, Inglaterra (1980). Desde 1995 é aposentada, como Professora Adjunta, da UFMG, onde começou a ensinar em 1970. Foi uma das líderes, em 1980, do ato público das mineiras contra violência e da criação do CDM (Centro de Defesa dos Direitos da Mulher). Na organização da passeata do 8 de Março de 1983, Celina era professora na pós-graduação do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG e presidia o CDM numa gestão colegiada. Entre 1987 – 1988 foi Diretora Técnica junto ao Conselho Nacional da Mulher, em Brasília.  Ocupou diversos cargos públicos de 1991 até 2005 – p.ex. de 1991 a 1994 foi Secretária de Cultura na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte; entre 2001 e 2007 foi assessora especial da Prefeitura Municipal de Ouro Preto nas áreas de Turismo, Cultura, Meio ambiente, Patrimônio e Desenvolvimento Urbano.

  3. Antônio Luiz Paixão (1947-1996) foi professor do Departamento de Sociologia da UFMG e referência nacional em sociologia das instituições e sociologia do crime. Trouxe à tona temas até então pouco investigados na área, como o drama vivenciado pelos criminosos nas prisões e a violência policial.

  4. Elaine Matozinhos Ribeiro Gonçalves (1952- ) foi a delegada da Polícia Civil de Minas Gerais responsável pela implantação das Delegacias de Mulheres e do Idoso. Foi membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) do Ministério da Justiça (1990-1993), Deputada Estadual (1999-2002) e Vereadora em Belo Horizonte (eleita em 2008; reeleita em 2012, cumpre 5ª legislatura).

  5. Bila Sorj (1950 –  ), reconhecida socióloga brasileira, professora e pesquisadora do Departamento de Sociologia da UFRJ. Foi atuante na criação e funcionamento em Minas do CDM (Centro de Defesa dos Direitos da Mulher), que chegou a presidir entre 1982 e 1983.
DEPOIMENTOS EM VÍDEO

MIRIAN CHRYSTUS

NELY ROSA

RODRIGO DA CUNHA PEREIRA

ELIZABETH ALMEIDA

ALOÍSIO MORAIS

PEDRO PAULA CAVA

ELIZABETH CATALDO

CELINA ALBANO

THAIS GUIMARÃES

ELIZABETH FLEURY

CONCEIÇÃO RUBINGER

BERNARDO DA MATA MACHADO

LUCIA AFONSO

OTILIE PINHEIRO

Pular para o conteúdo