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LÚCIA AFONSO

Repensando a dinâmica do feminismo

Intelectual dedicada aos estudos dos movimentos sociais e seus desdobramentos, professora e pesquisadora de psicologia social (UFMG e Centro Universitário UNA-BH), poeta, consultora, psicanalista. Lúcia Afonso foi uma das feministas a publicar no livreto impresso e uma das mineiras a se apresentar nas mesas do seminário de 1975 – “Mulher Brasileira em Debate” -, o primeiro seminário feminista realizado em Minas. Em seu depoimento, Lúcia Afonso não se furta ao debate e à crítica, fazendo reflexões muito autorais a respeito dos rumos tomados pelo movimento feminista brasileiro. Também conta um pouco de sua participação nos debates históricos e pesquisas que inauguraram o feminismo nos anos 70 e 80 em Minas.

Carmem Rodrigues (CR): Quando você participou do seminário feminista de 1975, em Beagá, estava estudando na UFMG?

Lucia Afonso (LA): Em 1975 eu já estava na universidade, eu era estudante de psicologia e muito enfronhada no movimento estudantil, nos movimentos culturais da época. Então eu participei de mesa-redonda no seminário “Mulher Brasileira em Debate”. E também participei na escrita de textos, que depois vieram a ser publicados; principalmente invocando o lugar político da mulher, da repressão sexual à mulher e também um texto sobre homossexualidade – um texto de denúncia praticamente da repressão da sexualidade  e do preconceito e da discriminação. 

Eu acredito que era um momento em que a Ditadura (1964-1985) ainda não tinha terminado, mas ela estava estertorando. Com a diminuição do poder ditatorial, acredito que muitas outras questões da sociedade começavam a pipocar, começavam a ter voz, começavam a ter lugar.

Então, eu acho que havia ali um se articular naqueles espaços possíveis, não é? Mas também havia certa dificuldade de ir além desses espaços possíveis. Então eu vou te dar um exemplo: já na segunda metade da década de 70 havia também a organização do Movimento Feminino Pela Anistia (MFPA) (1) e houve uma grande dificuldade de comunicação entre o Movimento Feminista e o MFPA. Não porque o MFPA fosse contra os direitos da mulher, mas o foco de cada um era diferente. Era como se fosse assim: “Então se você não encampa a demanda pelos direitos da mulher, a gente não vai militar no movimento feminino.” Estou dizendo isso porque eu militei nos dois. E no MFPA havia essa coisa de “não dá pra tratar dessa questão agora” – não dá pra tratar dos direitos da mulher agora até porque, na época, havia uma preocupação muito grande com diversas questões ligadas aos direitos da mulher. Havia uma certa espontaneidade não só do organismo, uma certa espontaneidade no movimento, trazendo demandas em torno da questão da sexualidade, da liberdade, da discussão sobre o aborto, da discussão sobre a igualdade no mundo do trabalho, da discussão sobre a igualdade no mundo da educação. Já havia várias demandas na área da saúde, não é? Ou seja, havia diversas demandas pipocando. E não se colocava ainda a questão de que você deveria reduzir as suas demandas para poder fazer qualquer articulação com outros movimentos sociais.

(CR): Que tipo de reações/ações você acredita que este seminário de 1975 produziu?

(LA): Desse modo, eu acredito sim que o seminário de 1975 foi importante pra dar voz, pra dar visibilidade, para deslanchar publicações, para deslanchar articulações e o próprio movimento. Mas acredito que as articulações políticas da época também eram bastante complexas nesse sentido. Onde que estava o inimigo? Qual ditadura? A ditadura militar? A ditadura capitalista? Qual ditadura você deveria lutar contra? Então havia ali uma série de dificuldades de articulação.

Eu não sei se você se importa de eu ir um pouquinho à frente porque, quando entra também nos anos 80, é quando tem início uma democracia no país e começa a articulação em torno da Constituição Federal de 1988, inclusive trazendo diversos direitos da mulher para Constituição Federal. Estávamos em outro momento, muito importante, que depois vai dirigir toda a luta para o combate à violência doméstica. Só que hoje eu acho que, os trabalhos que surgiram nessa esteira aí, implicaram em que de repente as demais questões começaram a sumir: a questão do aborto, a questão da liberdade sexual, a questão até da própria educação. Embora a educação também tenha caminhado de certa maneira mais democratizante e tudo. Mesmo assim, as questões de saúde da mulher hoje retornam, não é? Até porque tinham sido abandonadas lá atrás em torno do pacto contra a violência e que depois também se esvaziou. E eu pergunto: hoje como estão as delegacias, as coordenadorias? Elas podem até existir, mas será que estão funcionando conforme tinha sido planejado? Houve aí toda uma trajetória do movimento – acho importante mencionar isso (que são conquistas dos anos 90). Pois quando a gente pensa em 1975, aquilo impactou? Impactou! Mas o que estava acontecendo na década de 1990? Uma série de esvaziamentos que hoje devem ser retomados.

(CR): Como foi a educação que você recebeu em família – isso te estimulou de algum modo sobre esses temas?

(LA): A minha família era de ideias muito largas e não tive uma educação sexista. Desde pequenininha minha mãe me falava: “Minha filha, você tem que estudar, você tem que trabalhar”. Isso nos anos 1950! Eu nasci em 1953, no interior de Minas Gerais. Então havia na minha família um incentivo ao estudo e ao trabalho e não havia uma repressão na sexualidade muito grande não.  Simplesmente era um pouquinho mais disfarçado assim, o incentivo a ser livre. Acho que era porque minha mãe não conseguia ser muito escancarada com isso – ela era cerceada, não é? Mas não trouxe para suas filhas, nem para os filhos essa visão. Digo, minha mãe, porque meu pai teve uma atuação mais discreta nessa dimensão. Minha mãe era muito francamente a favor dos direitos da mulher. Então eu tive uma criação muito aberta nessas questões.

(CR): Você diria que chegou ao grupo feminista, após o seminário, já pensando a questão da mulher?

(LA): Eu acho que eu já tinha uma visão da mulher, das dificuldades da mulher se posicionar socialmente no mercado de trabalho, na política, na família – pela história de vida da minha mãe, que estudou! Na década de 1920 e 1930, ela estudou, fez curso normal (2) em Belo Horizonte – esse era um grau de educação bastante avançado paras moças da época. Minha mãe fez conservatório de música, por isso cantava, tocava piano. Depois se casou e foi abandonando todas essas coisas. Mas nunca se declarou infeliz – ao contrário, sempre se declarou feliz pelas escolhas que tinha feito. Ao mesmo tempo, incentivou filhas e filhos a se desenvolverem, se expressarem. Por isso acho que a história de vida da minha mãe foi  minha sementinha para quando chegou na década de 1970, aqui em Belo Horizonte, eu já estar antenada pra essas coisas.

(CR): Como você analisaria o foco do movimento QuemAmaNãoMata na violência?

(LA): Bem, o movimento QuemAmaNãoMata alcançou uma grande visibilidade, colocou a questão da violência, a questão do feminicídio, não é? Principalmente a questão do feminicídio na época, porque o feminicídio chocava as pessoas, criava uma comoção. Pois se você falasse em violência doméstica havia então certa condescendência, certa dificuldade – eu não estou falando do movimento feminista.  Estou falando do que eu percebo na sociedade brasileira – uma certa condescendência. Aquela coisa: “Isso é só uma briga de marido e mulher, isso é só uma discussão pequena”. Havia ainda uma distância grande entre o que era o feminicídio e toda a base da violência contra a mulher, que estava na base da sociedade. E essa violência ainda demora alguns anos pra começar a ser enxergada. Hoje já avançou bastante, não avançou tanto quanto precisava, mas já avançou bastante. Mesmo assim você percebe que ainda se trata a violência física de uma maneira muito mais clara do que a violência simbólica, do que a violência afetiva, do que a violência na saúde. Enfim, que essas violências que constituem a base da sociedade, não são contra as mulheres somente, afetam outros grupos sociais, onde ainda estão invisíveis, ainda é necessário dar visibilidade.

O que acho é que justamente ocorreu de se colocar a violência, o feminicídio, como o foco dos movimentos. Assim se faz o pacto contra a violência, a política nacional para mulheres, os desdobramentos da política nacional da mulher, o primeiro plano, segundo plano… Eles incorporam outras questões, mas de uma maneira muito frágil, muito pouco efetiva. Na medida em que você não tem financiamento, você não tem instituições, você não tem pessoal trabalhando, nas demais questões ligadas à educação, à saúde, à questão da área rural etc. O dinheiro que existe vai muito mais pra questão do pacto contra a violência. Era importante sim, mas não era pra deixar as demais questões à sombra. E eu acho que foi porque essas questões ficaram à sombra que o pacto contra a violência ficou tão fragilizado duas décadas depois.

(CR): E na universidade, como essas questões da mulher chegavam ali naquele momento?

(LA): Falando nesse assunto, também devo ressaltar a participação da minha colega, hoje falecida, Karin Ellen von Smigay (3) que foi uma pessoa importantíssima pra organizar também os movimentos em Minas Gerais, o Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM). Ela teve uma participação junto com Conceição Rubinger (4), junto com outras pessoas. E Karin trabalhava comigo na UFMG. Então a gente trocava muito, a gente fazia pesquisa juntas. Portanto, havia pessoas muito interessantes, inteligentes, excelentes pesquisadoras dedicadas ao tema – tive a satisfação de conviver com elas e muitas vezes de fazer pesquisa junto com elas.

Penso que as questões que emergem, vão sendo modificadas pelos acontecimentos da época, pelos processos da época. Então, as questões que estavam pipocando na década de 1970 reaparecem em 1990? Sim, mas modificadas. E o que acho que aconteceu foi que, quando na esteira da Constituição Federal de 1988 e da democratização do país, o que acontece é que não há fôlego suficiente pra trazer todas as questões necessárias para a cena política. Creio que há necessidade de fazer pactos em torno de algumas questões que são eleitas como as mais importantes naquela época. E elas são eleitas como mais importantes não apenas por serem estatisticamente mais frequentes ou moralmente mais importantes, ou eticamente mais importantes. Mas porque é aquilo que é possível você capturar numa determinada época com os demais grupos políticos que estavam lá. Vou te dar um pequeno exemplo: o movimento de luta pela creche começa a organizar creches comunitárias na década 1970 e vai pela década de 1980 afora. Toda argumentação era o direito da criança e o direito da mulher de ter as creches pra deixar a sua criança quando ela iria trabalhar. O direito da criança na educação infantil foi retomado –  e aí eu peço desculpas se eu tiver errado aqui alguma data. Se não me engano foi no final da década de 1980, início de 1990, em que se implementou a educação infantil no país. Então o que acontece? Aquela atividade que era das creches comunitárias passa para a educação, para a área da educação. O que foi um avanço que garantiu o direito das crianças. Mas quando passa pra área da educação, cai o horário integral e passa a seguir o horário da escola, horário parcial. Hoje nem é meio horário, menos de um terço do dia. E você tem aí uma redução de horas em que a criança fica na educação infantil. Parou-se de se falar no direito da mulher.  Ela continua tendo que ter uma alternativa ou deixar a sua criança no outro horário de educação infantil pra poder trabalhar. Então o que aconteceu aqui? Havia toda uma legitimação inicial da demanda da mulher por creches, depois em cima de todo movimento dos direitos da criança e do adolescente do qual eu também participei – que assino embaixo, pois é importantíssimo e continua sendo. Em cima disso você garante um direito e abandona o outro. Então esse tipo de movimentação acontecia o tempo todo no processo de democratização. E as mulheres, muitas vezes, tinham que recuar nas suas demandas pra poder aceitar algum impacto que resolvesse alguma coisa que fosse mais imediata ou mais aceita politicamente naquele momento.  Simples de entender: se você faz um pacto hoje sobre aquilo que é mais aceito, você pode ter certeza que você está guardando tudo no bolsinho aqui pra daqui uma década, duas décadas, tornar a ser colocado em cima da mesa. Não tenho dúvida.

 (CR): E na questão das agendas feministas, em geral houve avanços?

(LA): Na questão do feminismo eu acho que a gente avançou pouco. Eu acho que a gente avançou garantindo as leis de igualdade – para o mercado de trabalho, de igualdade de acesso a educação, de igualdade na definição da moradia da família, de respeito à diversidade das famílias. Acho que houve um avanço nessa direção. Entretanto, penso que os grandes avanços se deram na articulação dos diferentes movimentos sociais – o movimento negro e o movimento gay trouxeram mais avanços para as mulheres, às vezes, do que o próprio movimento feminista, na medida em que forçaram a sociedade a perceber o valor da diversidade. O movimento feminista tinha uma percepção intrínseca da diversidade, mas não fez dela uma bandeira. Tanto que depois ele passa até a ser questionado pelo feminismo negro, pelos movimentos das mulheres que vêm dos estratos mais pobres da sociedade. O movimento feminista não conseguiu unificar, não no sentido de achatar, mas de articular os seus diversos segmentos.

Acredito que hoje, por exemplo, as mulheres negras trazem questões muito delicadas, especialmente as questões ligadas à saúde pública. Se você falar em termos de violência obstétrica hoje as mulheres negras estão no cerne dessas denúncias. Se você for falar hoje da questão da igualdade no mercado de trabalho, você tem aí também a questão das mulheres negras que estão expostas às condições de trabalho mais precárias. Só que penso que é o momento em que o movimento feminista precisa retornar (acho que ele ainda tem lugar), e se fortalecer através da articulação com os demais movimentos sociais. O que a gente assistiu um pouco na última década de 1990, depois da Constituição Federal, foi talvez por falta de energia, por falta de gente para trabalhar, por falta de recursos: cada movimento buscando articular o seu estatuto, as suas instituições, as suas políticas públicas. Creio que isso foi muito importante na época, mas ao mesmo tempo foi uma coisa que enfraqueceu nos momentos posteriores.


 
NOTAS
  1. Em 1975, foi criado o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), “primeira entidade a levantar a bandeira da anistia”. Seu núcleo fundador era formado por oito mulheres, (mães, esposas e parentes de pessoas vítimas das ações de repressão da ditadura). E tinha como líder a advogada Therezinha Zerbini, esposa do general de brigada Euryale de Jesus Zerbini, cassado e preso após o golpe de 1964.

  2. O Curso Normal criado em 1835 tinha o objetivo de formar professores para atuarem no magistério de ensino primário e era oferecido em cursos públicos de nível secundário (hoje Ensino Médio). A partir da criação da escola no Município da Corte, várias Províncias criaram Escolas Normais a fim de formar o quadro docente para suas escolas de ensino primário.

  3. Karin Ellen von Smigay (1948-2011), professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da UFMG, falecida em 2011. Teve intensa e importante atuação em Minas, na criação e no funcionamento do Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDM). Em artigo em sua homenagem, estudiosos dizem que a professora merece ser lembrada porque “(…) como feminista Karin Smigay articulou o ativismo com a ciência (…), ela propunha a compreensão política das relações cotidianas e afetivas, mesmo que violentas, tendo por base a interface sujeito-sociedade e a leitura crítica das verdades instituídas” (PRADO et al, 2011, p, 203).

  4. Maria da Conceição Marques Rubinger – antropóloga, foi Diretora Geral do Departamento de Administração de Pessoal da UFMG. Coordenou, junto com Karin von Smigay, a primeira pesquisa feita em Minas a respeito da situação das mulheres que sofriam violência no início dos anos 80, junto ao CDM (Centro de Defesa dos Direitos da Mulher), organização criada após o ato público das mulheres em 1980 em BH.
DEPOIMENTOS EM VÍDEO

MIRIAN CHRYSTUS

NELY ROSA

RODRIGO DA CUNHA PEREIRA

ELIZABETH ALMEIDA

ALOÍSIO MORAIS

PEDRO PAULA CAVA

ELIZABETH CATALDO

CELINA ALBANO

THAIS GUIMARÃES

ELIZABETH FLEURY

CONCEIÇÃO RUBINGER

BERNARDO DA MATA MACHADO

LUCIA AFONSO

OTILIE PINHEIRO

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