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BERNARDO DA MATA MACHADO

Na confluência de Arte e História

Um dos ícones de sua geração, Bernardo Mata-Machado, historiador e também ator mineiro, analisa o ambiente cultural e político dos anos 70 e 80 no país e os movimentos de resistência ao governo militar. No júri simulado intitulado “A Honra ou a Vida” (apresentado em praça pública na Belo Horizonte de 1983), o personagem de Bernardo era o advogado de defesa do autor de um assassinato rumoroso em 1980: o marido mata a esposa de forma cruel. A noção de feminicídio ainda não existia. Mata-Machado relata à historiadora Carmem Rodrigues suas memórias e a reação da enorme plateia reunida na Praça Sete (5.000 pessoas no centro de Belo Horizonte), para assistir esse espetáculo em novembro de 1983.

Carmem Marques Rodrigues (CR): Como você descreveria o contexto político cultural dos anos 70, quando você se inicia no teatro em Minas?

Bernardo da Mata Machado (BMM): Bom, nos anos 1970, no Brasil, nós estávamos vivendo sob uma ditadura militar (1964-1985). Isso aí é talvez a informação mais importante. Mas, ao mesmo tempo, você tinha também um movimento de resistência a essa Ditadura. Na área cultural isso era muito evidente, muito forte, porque a ditadura fechava o Congresso Nacional na hora que queria, censurava a imprensa, intervinha nos sindicatos. Mas, nas artes, mesmo havendo também censura, as artes têm essa faculdade de trabalhar um pouco com o paradoxo, a ambiguidade e a ironia. Então a gente conseguiu despistar a censura e acabou que as artes vão se tornar, já mais para o fim da década de 1970, início de 1980, praticamente a única válvula de escape do descontentamento político. E, até sem querer, alguns artistas se tornaram líderes políticos – o Chico Buarque, e o próprio Caetano [Veloso], o [Gilberto] Gil. Mas não era essa a nossa, vamos dizer… Os artistas queriam ser, antes de tudo, artistas – mas acabou que a gente cumpriu essa missão.

Havia também, e é muito importante isso, o movimento da contracultura (1), que ali, a partir do início da década de 1970, chega ao Brasil… A ditadura também não sabia como lidar com aquilo: as pessoas cabeludas, falavam em liberdade sexual, se moviam em várias religiões – no candomblé, na umbanda, no zen budismo -, tinham a própria moda. Então aquilo também eu acho muito importante (como no caso do movimento da contracultura), a libertação feminina nesse período.

Belo Horizonte, até então, era uma cidade muito conservadora. É importante dizer isso. A atriz Dercy Gonçalves (2), quando vinha a Belo Horizonte, sempre tinha que passar pela Polícia Federal.  Certa vez ela disse que nunca mais ia voltar a Belo Horizonte: ela foi tirada de cena do [Teatro] Francisco Nunes! O delegado subiu no palco e encerrou o espetáculo… Pra você ver como é que era, não é? Então, esse aspecto da tradicional família mineira (TFM), ela se desmonta nessa década. E a repressão sexual sobre as mulheres, nas famílias mineiras, também se desmonta. Isso é muito importante, eu acho, na eclosão do feminismo em Belo Horizonte.

(CR)Foi nesse contexto que você se inicia no teatro em Belo Horizonte?

(BMM): E assim eu entrei no teatro: sem fazer escola, sem nada. Isso foi em 1970. Coincide um pouco com minha saída do movimento secundarista, quando começa a repressão no Colégio Estadual Central. E, depois do Ato Institucional Número Cinco (AI-5) (3) a barra pesa demais. Então, de certa forma, o teatro pra mim foi uma válvula de escape e [uma forma de] continuar na resistência, mas sem me expor diretamente. Foi uma forma de expressão naquele ambiente de censura. Tanto que, quando se inicia a redemocratização, eu acabo saindo do teatro.

Ali era então uma guerra de resistência pela arte. E sem precisar ser um discurso, o que era muito importante naquele momento dentro do teatro. A proposta não era você fazer um manifesto: era fazer arte e, através da arte, provocar reflexão e fazer a luta política também. Mas sem necessariamente ser panfletário.

 (CR): Como foi o convite para atuar no espetáculo em praça pública que o diretor Pedro Paulo Cava (4), a pedido da Celina Albano (5), estava organizando – sobre o assassinato daquelas mulheres, em 1980, em Belo Horizonte? E sua participação nessa encenação, como foi?

(BMM): Bom, eu estava em meu melhor momento como ator. Foram meus quinze minutos de fama. Porque eu tinha acabado de encenar aqui em Minas a adaptação do romance do Fernando Sabino (6), Encontro Marcado (7). (….) E o espetáculo fez um sucesso enorme, uma produção muito bem feita, de Nely Rosa (8) e Matilde Biaggi (9), direção de Paulo César Bicalho (10).  Mirian Chrystus, jornalista, atriz de teatro e que estava nesse movimento QuemAmaNãoMata (QANM) – estava de cabeça nesse movimento. Mirian esteve nos dois – na organização do ato público em 1980, quando dos assassinatos das duas mulheres (11) e em 1983, o julgamento de um dos assassinos (12).  Havia um advogado muito famoso em Belo Horizonte que foi contratado pelo assassino – fugiu o nome dele agora, era o Ariosvaldo (13) não foi? Ele utilizou uma tese – foi outro dia que ela caiu no Supremo Tribunal Federal, foi outro dia, não tem nem dois anos! A tese da legítima defesa da honra. Um absurdo total! É porque é só a honra do macho [que conta nesta interpretação dada pelos advogados]! A mulher é assassinada e o assassinato foi legítimo porque o sujeito está me defendendo a honra! Essa tese foi utilizada durante muito tempo.

E tinha todo esse contexto. Eu já conhecia a Thaís Guimarães e também o Pedro Paulo Cava, velho de guerra, né? (…) Então esse convite veio assim nesse contexto e eu evidentemente aceitei na hora, não tive nem dúvida. Achei sim uma oportunidade de fazer [teatro de] rua. Uma coisa que eu nunca tinha feito, a rua né? (…) A rua tinha esse significado, porque a rua foi interditada no tempo da ditadura, como espaço de expressão. A rua significava um lugar também da expressão da liberdade, da livre expressão.

Tudo isso se juntou pra essa chegada lá no espetáculo na [Igreja] São José, nesse espetáculo que não sai da cabeça, que é realmente inesquecível.  Aliás, eu estou fazendo um livro de memórias agora e tem dois espetáculos que duraram apenas um dia só e que pra mim foram o que mais marcaram. Curioso isso! Foi essa encenação lá na Igreja São José e uma montagem feita no festival de inverno da UFMG, falando em universidades aqui de novo, que eu montei: As histórias fantásticas e os tipos populares de Diamantina.

(CR): E como que foi a recepção do personagem que você fez? Qual foi o seu personagem?

(BMM): Eu fiz o vilão – o advogado de defesa do assassino. E olha, foi tudo tão improvisado, tão rápido que eu não sei se eu criei personagem não, sabe? Por quê? Eram dois discursos, eu não sei se tinha alguma coisa além dos dois discursos. Era o advogado de defesa e o advogado de acusação. Era um júri simulado. Elvécio Guimarães (14) fazia o advogado de acusação. Um ator que vinha da TV Itacolomi, na década de 1950, ator de televisão aqui em Belo Horizonte, carregava toda uma experiência.  

Eram esses dois discursos que eu me lembro e eu fazia a defesa do assassino. Sinceramente gente, é muito melhor fazer o vilão do que o mocinho sabe? O público fica mais interessado, não sei por quê. Essas coisas da ambiguidade, as contradições da vida… Então, eu fiz aquilo com muita facilidade, vamos dizer assim. E pra isso eu vesti o figurino do espetáculo “Encontro Marcado”.  Nunca tinha usado terno até aquela época, mas advogado usa… Uma das coisas que a gente em teatro fazia na época, como o ator não ganhava nada, você levava pra casa pelo menos as roupas [do figurino do ator]. Eu levei: tinha três figurinos, inclusive um chapéu – usei esse chapéu pela cidade muitas vezes. Então, de certa forma, estava incorporado um pouco do Eduardo Marciano também.

Eu não me lembro exatamente de como é que como foi esse palco. Apenas me lembro de ser um espaço muito espremido pra mim e o Elvécio trabalharmos – a gente quase não se mexia. E eu só me lembro de que estava apinhado de gente e tanta gente que deu pra Matilde Biaggi ficar embaixo, rente ao palco (mais embaixo). Ela não era vista, porque tinha muita gente em volta – com o texto na mão ela ia fazendo a função de ponto, né? Acho que a geração de hoje não sabe o que é isso. No teatro, antigamente, tinha o cara que ficava ali embaixo, num buraco dentro do palco, soprando o texto quando os atores esqueciam. Chama-se ponto. Então a Matilde ficava ali com o texto e, qualquer esquecidinha, ela ia até se antecipando, ia falando o texto antes da gente.

E, agora, o que aconteceu (….) é que eu senti… Só o ator de teatro é que sabe o que é sentir o público: porque o teatro é um diálogo do palco com a plateia. Cada espetáculo é diferente do outro. Não tem jeito, sabe? E depende desse diálogo. Tanto do diálogo dos atores no dia, como é que os atores estão naquele dia – se o cara está de ressaca, por exemplo, é uma m(*). Então você tem que estar fisicamente preparado, aquilo é um trabalho físico. Ainda mais quando você fica em cena o tempo todo. E tem aquela coisa do diálogo com o público. Então eu senti que o texto estava alongando demais. Sabe o que aconteceu? (…) e aí eu pensei: “Gente eu vou terminar isso aqui”. Quer dizer foi um reflexo, um insight.  Parei de dar o texto e gritei: “Quem ama mata!”. Aí foi a vaia mais fantástica que eu recebi na vida – porque aquilo ali pra mim foi como um grande aplauso. Aquele grito impactou o público imediatamente. Despertou toda a indignação do público com aquele advogado salafrário, defendendo teses absurdas, como a legítima defesa da honra. As pessoas estavam ali justamente pra homenagear aquelas mulheres que foram assassinadas. Eu utilizei essa ambiguidade do slogan do movimento que se chamava QuemAmaNãoMata e eu falei: “Quem ama mata!”. Isso gerou um frisson no público. Acho que o espetáculo cumpriu o objetivo dele ali. E não vou desmerecer o Elvécio Guimarães não. Mas como todo ator é um narcisista em potencial, eu fui melhor…!

 

 
NOTAS
  1. Na sociologia, a contracultura refere-se a um movimento libertário de contestação, surgido na década de 1960 nos Estados Unidos. Rompeu com diversos padrões morais e culturais, ao contestar de forma radical comportamentos da cultura dominante. Espalhando-se para além das fronteiras norte-americanas através da música, do teatro, da pintura, amparando o deslocamento de grandes grupos em busca da vida comunitária e criação de slogans inesperados. Expressava a rebeldia e insatisfação anti-racista, anti-guerra do Vietnã, anti-sistema (black is beautifull//negro é lindo; make love, not war// faça amor, não faça guerra; Peace & Love//Paz e Amor). Unia conceitos extraídos da filosofia hindu e oriental com noções buscadas nos manuais anarquista e socialista, amalgamando psicanálise, arte, psicodelismo e naturismo.

  2. Dercy Dolores Gonçalves da Costa (1907-2008), atriz, humorista e cantora.

  3. O AI-5 foi um decreto realizado em 1968 que inaugurou o período mais sombrio da Ditadura Militar, além de ter reforçado o autoritarismo do presidente, na época o general Artur da Costa e Silva.

  4. Pedro Paulo Cava (1950-) é diretor, ator, dramaturgo, produtor e professor de teatro. Fundador em Belo Horizonte do Teatro da Cidade. Apoiou desde sempre as lutas feministas, ainda nos anos 80 em Minas. 

  5. Maria Celina Pinto Albano (1944-) Graduou-se em Sociologia e Política (UFMG, 1967); tem pós-graduação em Ciência Política c/ orientação do Prof. Fábio Wanderley Reis (UFMG, 1970); e Doutorado em Sociologia pela University of Manchester, Inglaterra (1980). Em 1970 ingressa como professora na UFMG, de onde se aposentou em 1995. Foi uma das criadoras e a primeira presidente do CDM (Centro de Defesa dos Direitos da Mulher) em Minas, organização que resultou do ato público de 1980, em Belo Horizonte, quando surge o slogan QuemAmaNãoMata. Integrou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em plena Constituinte de 1988, no Lobby do Baton. Foi secretária de estado da cultura no governo Hélio Garcia e chefiou a Secretaria de Cultura de Belo Horizonte no governo Célio de Castro. Nomeada em 2013, coordenou os trabalhos da Comissão da Verdade em Minas.

  6. Fernando Sabino (1923-2004), escritor, jornalista, cronista e editor.

  7. Reconhecido romance do escritor mineiro Fernando Sabino, “O encontro marcado” é um romance ao mesmo tempo de formação e de costumes que retrata a juventude de Eduardo Marciano e de seus amigos na Belo Horizonte dos anos 40. Inspirado nas vivências e angústias do autor e seu grupo de intelectuais mineiros ainda em Belo Horizonte. Depois migram para o Rio de Janeiro ainda em fins dos anos 40 – Paulo Mendes Campos (1922-1991), Fernando Sabino (1923-2004), Hélio Pelegrino (1924-1988).

  8. Nely Rosa (1953 – ), reconhecida produtora cultural em Belo Horizonte, foi atriz, modelo e restauranteur.

  9. Matilde Biaggi (1945-) – Produtora cultural e atriz.

  10. Paulo César Bicalho Franco (1939-), diretor, pesquisador, professor, cenógrafo e autor.

  11. QuemAmaNãoMata – O movimento surgiu após a morte de duas mulheres, Eloísa Ballesteros e Maria Regina Souza Rocha, assassinadas por seus maridos em 1980. Em protesto um ato público reuniu mais de 400 mulheres nas escadarias da Igreja São José, no centro de Belo Horizonte. Foi durante a organização desse ato público de 18 de agosto de 1980 que surge o slogan QuemAmaNãoMata.

  12. Julgamento do engenheiro Márcio Stancioli que assassinou a mulher, Eloísa Ballesteros, com cinco tiros em 1980.

  13. Ariosvaldo de Campos Pires (1934-2003) foi um renomado advogado criminalista, professor da Escola de Direito da UFMG. O advogado não foi o formulador da interpretação da “legítima defesa da honra”, mas valeu-se desta tese em vários julgamentos em que participou como advogado de defesa.

  14. Elvécio Guimarães (1933-2016), ator e diretor de teatro.
DEPOIMENTOS EM VÍDEO

MIRIAN CHRYSTUS

NELY ROSA

RODRIGO DA CUNHA PEREIRA

ELIZABETH ALMEIDA

ALOÍSIO MORAIS

PEDRO PAULA CAVA

ELIZABETH CATALDO

CELINA ALBANO

THAIS GUIMARÃES

ELIZABETH FLEURY

CONCEIÇÃO RUBINGER

BERNARDO DA MATA MACHADO

LUCIA AFONSO

OTILIE PINHEIRO

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