BETH ALMEIDA
A lei também a serviço das mulheres
Advogada de atuação intensa no campo social, Elizabeth Mariano de Almeida ou Beth Almeida, como era conhecida, formava o trio da três Beths do movimento feminista que se iniciava em Minas nos anos 70. Ainda jovem, em seus 22, 24 anos, a moça de fortes opiniões e interesses em política, estudante de Direito da UFMG, já se distinguia por suas ideias e firmeza. Saía da Faculdade de Direito, no centro de Belo Horizonte, e se dirigia ao escritório onde estagiava. Recém-formada, Beth Almeida tornou-se associada do escritório e logo se inicia sua formação no feminismo, com leituras e debates no grupo que se fortaleceu com a realização do seminário de 1975 – Mulher Brasileira em Debate. Ali mesmo, na casa de Mirian Chrystus e Aloísio Morais, a jovem Beth Almeida se encontrava com o resto do grupo que criava o jornal independente DeFato. Foi um importante veículo de debates das ideias dos mineiros, que se preocupavam com o presente restrito pelas imposições do regime militar e com o futuro da democracia que defendiam. Também estendeu sua atuação ao Centro de Defesa dos Direitos da Mulher, auxiliando as mulheres em situação de violência que pediam ajuda jurídica. Dona de uma memória impressionante, com histórias bem contadas e cheias de detalhes, Beth Almeida faz, nesse vídeo, a crônica de costumes e crônica política dos bastidores desse jovem grupo.
Carmem Rodrigues (CR): Gostaria de começar nossa conversa pedindo pra você contar um pouco sobre o Seminário que aconteceu em 1975 no DCE da UFMG. (1)
Beth Almeida (BA): Foi um seminário que defendia o feminismo. E era a palavra odiada e odienta e nós resolvemos assumir que nós éramos feministas sim! Eu e Miriam Chrystus (2) tínhamos uma ligação grande – a gente morou na mesma república de estudante e tal e muito assim voltadas pra Literatura. Nós duas éramos apaixonadas, e somos até hoje, por Literatura. A gente conheceu a Beth Fleury (3) e a Beth Cataldo (4) e elas eram bem jovens. A gente primeiro criou um grupo pra fazer leituras feministas – até a Betty Friedan (5) nós lemos.
O Ano Internacional da Mulher já tinha sido definido pela ONU para ser celebrado no oito de março (6). Aí foi uma conversa minha e a Miriam, ela falou assim: “Beth, eu acho que eu sou feminista e você?” “Eu tenho certeza! Então a gente vai deixar passar o oito de março, ano internacional da mulher, sem nada?” “Vamos fazer alguma coisa?” Não vamos deixar passar. Vamos fazer alguma coisa. E aí abrimos pra Cataldo e Fleury. “Olha a gente está conversando, a gente decidiu que é feminista.” E é legal porque a gente pensou muito antes, sabe? Não foi assim, Maria vai com as outras.
Nós fizemos contato com feministas reconhecidas que já tinham atuação no Brasil. No Rio, a Branca Moreira Alves (7) era que liderava, em São Paulo tinha Sílvia Pimentel (8), tinha Rachel Moreno (9), psicóloga e sexóloga… Eu só sei que a gente montou três dias de debates, eu participei da mesa, palestras… Mas a gente fez isso com a cara e a coragem, porque naquela época feminismo era palavrão. O pessoal da esquerda tinha horror de feminista! (….) Pra esquerda, feminista era quem queimava sutiã na praça, e morreu aí. O maior preconceito. (…) Mas resolvemos bancar. Bancamos assim mesmo, tinha tudo pra dar redondamente errado, e deu estupidamente certo.
Três noites de DCE (Diretório Central de Estudantes da UFMG) lotado, mas tão lotado… Porque ele formava aquela arena, era meia arena… Nos corredores de passagem era todo mundo sentado no chão, nos degraus, pra todo lado. Foi um acontecimento que balançou Belo Horizonte. O povo ia e assim… De repente a gente viu que havia uma demanda por conhecimento, por esclarecimento – afinal o que vocês estão querendo? E essa demanda se mostrou tão forte, a rasteira que alguns grupos do DCE pretendiam passar não deu certo.
Medo a gente sempre teve, mas o medo não nos paralisava, essa era a verdade. A gente tinha medo, porque já tínhamos perdidos amigos. Era tão triste, né?
Na verdade, nós fizemos um jornalzinho para o ciclo de debates com textos que eram importantes pra nós, textos básicos. Eu escrevi dois, acho que a Miriam dois. Isso tudo assim, nós conseguimos alguns patrocínios…
(….) A coisa foi tão bonita e tão surpreendente pra nós, porque a gente estava com medo. A gente tinha medo – havia uns gatos pingados que apareciam lá querendo brigar, que nem o sociólogo Romualdo Dâmaso, no último dia: “Las putas, donde estan las putas!”. Só que no dia que ele chegou com esse “las putas, donde estan las putas”, tinha uma especialista em sexualidade que calou a boca do Romualdo [Rachel Moreno]. Tinha que calar assim no tranco, porque ele era muito intenso e gostava de aparecer mais doido do que era. Mas a psicóloga e sexóloga [Rachel] deu um tranco nele que aquela pessoa se sentou e ficou assim quietinho.
Na verdade eu acho que eu posso definir nós quatro como quatro meninas muito corajosas, meio que sem noção de risco!? Não a gente tinha noção. Olha como a gente fazia o jornal DeFato (10)! Eu consegui criar todo um arcabouço jurídico de registro do jornal independente – aparentemente legal, naqueles tempos duros claro que não era. Mas ninguém, nem mesmo a Polícia Federal, conseguiu nos bloquear. Eu falei: “Olha, a gente não pode deixar ponta solta na esfera legal”. Fizemos tudo lindo, certinho. Aí, nos primeiro meses de funcionamento do nosso jornal, chegou um menino, um estafeta da Polícia Federal, querendo comprar todos os números publicados. E fazia questão do recibo em nome da Polícia Federal. Sim, perfeitamente – arrumamos tudo. Mas essa foi a menor intimidação de todas. Como a gente fazia o jornal à noite, eles passaram a mandar duas viaturas que ficavam de plantão na rua, do DOPS [a polícia política da época], e às vezes a gente saía de madrugada pra tomar caldo de mocotó, ali na Floresta. E aonde a gente ia víamos as viaturas, andando devagarzinho, seguindo a gente. Tipo assim, nós estamos aqui. E nós convivemos com isso. Não era fácil não….!
(…)
[Em 1978] Só sei que puseram um coquetel molotov na redação do “DeFato”, que funcionava na casa do Aloísio [Moraes] e do Fernando Assumpção. E, menina… a gente deu tanta sorte que o coquetel, eram dois, não estourou. Foi o pessoal do MAC.
(EF): O que era o MAC?
(BA): Movimento Anti-Comunista daquela época. E por sorte, então, ninguém se machucou. A única coisa [grave] que houve realmente foram algumas prisões [entre integrantes do grupo do jornal] – isso envolveu Fernando Assumpção e Kenneth Albernaz (12). Nessa o Javert Monteiro também foi preso, um monte de gente.
Bom, mesmo sendo advogada, fui ameaçada de ser presa. Porque, primeiro eles [os policiais] cercaram a Medicina – eu já era formada, então se me pegassem no III ENE (Encontro Nacional de Estudantes), pra mim ia ser barra pesada. Então eu fiquei do lado de fora pra articular a reação ao que acontecesse. Aí [estavam lá] o Fernando, Javert, Kenneth, um monte de gente – você nem imagina! Eles cercaram, prenderam e conduziram todo mundo para aquele parque de exposição agropecuária [Parque da Gameleira].
(EF): E você?
(BA): Uai, eu me vesti de advogada, que eu já era, terninho, saltinho e tal e me apresentei como advogada da família Assumpção, a família do Fernando. Aí um rapaz me atendeu: “Ah pode aguardar um pouco que meu colega vai te atender”- no DOPS, ali na Afonso Pena. Eles estavam lá, o pessoal mais combativo estava todo no DOPS incomunicável. Não tinha habeas corpus, não tinha visita de advogado, não tinha nada – tudo interditado. Aí eu fui, na cara de pau, como advogada. Quando estava na antessala do policial que estava lá de plantão, me aparece uma pessoa… Os m* dos infiltrados. “Olha, Elizabeth, você por aqui?!” Cretino, bem que falaram [desses agentes]. Porque ele foi estudar na Escola de Direito como transferido de Divinópolis – onde só tinha aulas no fim de semana. Então já era muito suspeito aquele negócio. E ele tinha uma cara chata, esquisito. E, na verdade, a gente isolou ele, porque desconfiávamos… Menina e, naquela hora, ele veio sorrindo. E eu, muito séria: “Realmente eu sou advogada da família Assumpção e nós temos notícias de que vocês estão mantendo aqui, sob prisão ilegal, Fernando José de Assumpção – estudante universitário e contra o qual não pesa nenhuma acusação.”
Aí o cara começou a rir. “Não pesa nenhuma acusação Dona Beth?” Abriu a gaveta e puxou umas fotos do Fernando [carregando faixas] “Pelas liberdades democráticas”. Fernando era muito ativo. Mas, eu muito séria: “Até agora você está me mostrando fotos de um estudante participando de uma assembleia estudantil. Cadê o crime?” “Olha Elizabeth, eu não vou discutir com você não! Eu vou lhe dar um conselho: se você não está gostando da permanência do Fernando aqui, se cuida porque você pode vir fazer companhia pra ele.” Respondi: “Mas você não tem nada contra mim.” Ele puxou as fotos de novo, e tinha eu lá, junto com Fernando.
(CR): Você teve alguma participação no ato público de 1980?
(BA): [conta que naquele ano de 1980 era mãe de um menino de dois anos e um bebê recém-nascido] (…) Foi uma loucura. A ideia inicial era os dois meninos serem criados juntos. Mas aí veio a Fernanda também [terceira filha]. E me lembro, por exemplo, que em outubro de 1981, o Felipe tinha um ano e quatro meses e o Tiago ia fazer três anos em 25 de outubro. Eu fiquei com três bebês, além do escritório. Então, foi impossível. Aí eu tive que reduzir minha participação.
(CR): Mas sabe-se que você, como advogada, atuou bastante no Centro de Defesa dos Direitos da Mulher…
(BA): (…) eu trabalhei muito no SOS Mulher. Houve a fundação do CDM, que tinha aquele local na rua da Bahia. E o SOS funcionava no centro. (…) É, porque lá tinha um telefone, as mulheres ligavam, conversavam e recebiam o endereço do meu escritório. Como não poderia me deslocar para atendê-las, eu as atendia no meu escritório.
(…)
(EF): Beth, conta aqueles casos das mulheres que você atendia no SOS Mulher. Como era a situação delas?
(BA): Gente, a situação era muito precária, não é? Não existia a Lei Maria da Penha, nada. Na verdade a mulher que era abusada e chegava espancada na delegacia – em geral era objeto de troça dos policiais. Tinha alguns que até repetiam aquela famosa frase do Nelson Rodrigues: “Nem todas as mulheres gostam de apanhar. Só as normais.” Lembram-se disso? Era maldade aquilo.
Então aconteciam coisas muito malucas. Eu via, percebia que aquela mulher tal estava em risco. Então, pra ficar disponível pra ela, passava o número de telefone que eu tinha na minha casa, do lado da minha cama. Então eu recebia os telefonemas assim. Houve um que foi barra. Três horas da manhã recebi uma chamada a cobrar de telefone público. Eu atendi – pela voz percebi que era uma moça que eu já tinha atendido. Todo mundo me chamava de doutora; e se você falasse pra não chamar elas não confiavam em você. Ela falou assim: “Doutora eu estou”… Eu falei: “Menina, são três horas da manhã!” “Eu sei doutora. Mas eu estou de camisola, pé no chão, aqui no telefone público perto da minha casa. Meu marido está trancado em casa com meu menino de cinco anos e um revólver carregado.”
Eu morava aqui perto no Sion, e ela morava lá onde Judas perdeu as botas. Sempre perguntava se tinha delegacia perto. Então falei: “Acho que você me disse que tem uma delegacia perto da sua casa – é perto aí?” “A pouco mais de um quarteirão”, ela respondeu. Eu falei: “Olha, se eu sair de casa agora, pra chegar aí, vou me atrasar muito. E é capaz até de eu me perder.” Acrescentei: “Corre até a delegacia, procura o delegado de plantão; pede pra me ligar do telefone da delegacia.” Ela correu, coitada. Chegou lá, falou que era um delegado bem legal. Liberou o telefone, ela ligou pra mim, passou o telefone pra ele. Aí eu conversei com eles, expliquei a situação. Ele me disse: “Ah, não, doutora. Nós vamos pegar esse cara. Que absurdo! Aqui pertinho da gente e fazer uma coisa dessa!” O delegado ficou com o orgulho ferido. Eu respondi: “Olha, se o senhor puder me ajudar, ela vai precisar de um laudo de corpo de delito o mais rápido possível. E isso poderia ser adiantado, porque ela tinha amigas na região que poderiam ficar com o menino.” O delegado foi solícito: “Pode ficar tranquila. Eu marquei com ela oito horas da manhã no meu escritório.” Ela deixou o menino com a amiga, o delegado mandou acompanhar até o Instituto Médico Legal. Foi feito o laudo e a gente cravou a unha. Polícia foi lá, desarmou, prendeu – porque eles também faziam as arbitrariedades, quando queriam, não é? E essa foi uma das que eu aconselhei a ir embora [da cidade].
E tinha uns casos que, lidando, a gente sabia que a única solução era sumir. Você já viu o tanto de caso de mulher que já pediu proteção na delegacia e morre? Essa menina foi a primeira que eu mandei sumir. Conversei com ela, falei assim: “Você não tem parente? Pelo seu lado de seu pai, pela sua mãe?” Claro que não podia ser da família dele. “Mas quem é o [parente] mais afastado, que mora fora de Minas e tal?” Aí conversando, ela era muito trabalhadora (era costureira), e se lembrou de uma prima que morava em Guarapari (ES). E resolveu fazer contato. A prima deu apoio, ela se mudou. Conseguiu se estabelecer como costureira e até casou de novo!(…) Algumas a gente tinha que mandar embora, correr.
Eu passava pra elas os meus horários. Na verdade passei um bom tempo que não dava pra atender nenhum cliente no escritório de manhã. Eu chegava de manhã e as mocinhas já estavam lá, no corredor do prédio, esperando eu chegar. Todas encolhidinhas.
Mas eu também fiz umas coisas bem boas, sabe? Eu festejava! Teve uma que eu cheguei cedo porque eu estava cumprindo um prazo legal e tinha que dar conta de uma tarefa. Quando cheguei, bem cedo, ela já estava lá. Às vezes elas ligavam fora do horário pro SOS e o pessoal não tinha como me avisar. Assim elas iam ao escritório. Era novinha, sabe? Um jeitinho muito humilde e tal. Falei: “Olha, hoje eu estou por aqui [apertada de trabalho]. Mas vamos conversar. Conta o que é…” Em resumo iam mudar de um apartamento pro outro. O marido chegou bêbado na noite anterior. Ela morava com o marido e uma menina de dezesseis anos – veio do interior e era babá da filha dela. Ela tinha uma filhinha pequena. E o marido bêbado queria tomar cerveja no caneco tal. Mas ela respondeu: “Ah, mas esse copo já está embalado. Fala qual outro que você quer que fica mais fácil aqui desembalar que eu te dou”. Aí o cara arrumou maior kizumba: “Que embalado! Eu quero meu copo!” E o cara começou a quebrar as coisas e chutar e fazer escândalo. Enfim, ela foi parar cedinho lá no meu escritório.
Eu olhei pra ela e pensei: “Meu Deus, o que eu faço?” Na época funcionavam só duas varas de família. E tinha um juiz que era muito legal, o Dr. Caio. Então eu sempre dava um jeito de chegar nele. Mas aí, enquanto eu escrevia a história, eu sentava na máquina. Não era nem computador naquela época. Disse a ela: “Corre na sua casa, fala pra essa menina de dezesseis anos ir escrevendo numa folha de caderno o que ela viu acontecer ontem.” Porque a mocinha era menor de idade, trabalhando, estava tudo irregular. Mas, além da palavra da esposa, a babá era o que eu tinha. Aí ela chegou correndo com o papel – juntei com a minha petição. Baixei lá no Fórum. Imagina, esse homem pode quebrar tudo que a mulher ajudou a comprar, pois ela trabalhava também. Menina, eu consegui uma liminar pra ela tirar toda mudança e colocar em local resguardado, – sendo ela a depositária. Ou seja, o marido não tinha direito de mexer. Deixando uma intimação pra ele ir ao Fórum e comunicando que a guarda da menina (provisória), já estava outorgada à moça. Pronto. Enquanto isso, ela também teve que correr. Pedimos aos irmãos pra arrumarem um caminhão de mudança – foi uma correria! Só sei que pagava pra ser uma formiguinha e estar na casa deste cara: ele chegando de noite, abrindo a porta e o apartamento todo vazio, sem nem uma cortina. Eu falei pra ela: “Leva tudo!”
A gente tinha que trabalhar muito. E correr, era uma luta contra o tempo também. Mas, mesmo assim, mas era muito satisfatório. Gratificante demais.
(CR): Lembra-se de algum outro episódio marcante?
(BA): Esse caso foi estranhíssimo. Ela chegou, marcou pelo SOS Mulher. Era uma mulher alta, um metro e oitenta, mais ou menos – o que era raro naquela época, não é? E ela era morena, um cabelo muito preto e liso. Uma mulher bonita, alta, magra, um cabelo grande que ela fazia uma trança de lado assim, meio exótica. Aí eu cheguei – ela se sentou e começou a contar a história dela. O marido era PM; estava com uma amante na mesma rua. Mas, por outro lado, ele era muito bom, cuidava muito bem dela. Toda manhã levava o café na cama pra ela. Um belo dia, a filha de quinze anos acordou bem cedo pra estudar pra uma prova e escutou um ruído na cozinha. Agora essa menina deve ter tido uma intuição muito forte porque ela foi pra cozinha sem fazer ruído. E ficou de fora observando o pai. Que estava passando café, mas enquanto coava o café ele pegou uma caixinha, lá embaixo na pia da cozinha. Abriu a caixinha pegou uma coisinha na caixinha, socou, pôs um copo de vidro, pôs o café e misturou e foi levar o café pra mulher na cama. Era arsênico. Era isca pra formiga e rato. Ela estava há seis meses com problemas digestivo que os médicos não conseguiram explicar. A filha viu, mas ficou quietinha. Deixou o pai ir e voltar. Quando o pai voltou, o copo ainda estava em cima da pia com o restinho de café. A filha foi e passou a mão no copo. Aí levaram pra fazer exame e foi constatado. A mulher foi ao médico que disse a ela: “Olha a senhora não durma no mesmo quarto com ele porque, por inalação, mata muito mais rápido e vai ser muito difícil descobrir.” Enfim, estava tudo pronto. Com o resultado desse laudo, era só pegar o cara e prender. E ela: “Não senhora, doutora! Quero só que ele me dê uma pensão por mês”. Eu falei pra ela assim: “É só isso que você quer?” Respondeu: “É.” Minha reação: “Então você vai procurar outro advogado. Eu não sou sua advogada.” Retrucou: “Mas doutora! É porque meu irmão também é policial e falou que se eu fizer alguma coisa ele vai ser muito prejudicado, coitado”. Perguntei a ela: “Você esqueceu suas dores horrorosas no estômago?” E chamando o sujeito de coitado?! Pois ela bateu o pé; aí eu poderia encaminhar pra defensoria, não é? Argumentei: “Tem a defensoria, tem bons advogados, mas aqui no meu escritório eu decido. Não, isso eu não vou fazer”. E ela foi-se embora.
Meses se passaram e, um belo dia, estou no escritório, a secretária fala comigo: “Doutora, tem uma senhora aqui muito machucada, mas ela não marcou nada aqui com a gente não.” Perguntei: “Mas ela está machucada?” “Tá muito”, explicou. Avisei: “Então manda entrar”. Aí era ela. Gente, ela estava com o braço na tipoia, o rosto cheio de calombo de pancada, perna quebrada, se arrastando. E me explicou: “Doutora, agora eu quero divórcio. Eu quero tudo daquele cretino que quase me matou.” Tá bom, agora nossa conversa é outra. Só que você não sabe da maior: todo processo [do envenenamento] ela entregou pra ele, na mão dele que era polícia e desapareceu. Então não podia nem alegar a tentativa de assassinato! Eu não tinha prova nenhuma. Mas aí eu caí matando em cima da questão da violência, não é? E ela estava realmente assustadoramente machucada, acabada. Então, fizemos tudo lá e ele acabou fazendo um acordo, deixando a casa pra ela, uma boa pensão.
Mas essa é daqueles casos inesquecíveis, sabe? Porque, assim, você imagina que eu ia admitir que aquela mulher que foi envenenada durante meses, entrasse na justiça pra pedir uma pensãozinha para o danado do PM, marido dela? Eu não ia participar disso; não participei e acabei acudindo muito melhor. Só acho que ela não precisava ter apanhado tanto.
(…)
Mas essas coisas, a estranheza de conviver com a mulher e da desconfiança da mulher pra mulher… Enfim, penso que ainda estamos num tempo distante da prática da sororidade, sabe? Acho que esse povo está sonhando com livro do Christian Andersen. Sororidade entre mulheres? Não tem não.
MIRIAN CHRYSTUS
NELY ROSA
RODRIGO DA CUNHA PEREIRA
ELIZABETH ALMEIDA
ALOÍSIO MORAIS
PEDRO PAULA CAVA
ELIZABETH FLEURY
CONCEIÇÃO RUBINGER
BERNARDO DA MATA MACHADO
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