NELY ROSA
A arte de estar no futuro
Nely Rosa se distinguiu na vida político-cultural de Minas com uma participação marcada por múltiplas atividades – nas revistas independentes dos anos 70; nos desfiles de moda como modelo; atriz no teatro mineiro; atuou ainda na educação infantil; tornou-se também uma ativista política na redemocratização. Depois, como restauranteur e produtora cultural. Sua história de vida se confunde com os atos de resistência cultural da vida mineira e brasileira. E sua jornada é, de várias maneiras, a jornada dos jovens que se envolveram nessas atividades e na perspectiva da contracultura. Por isso o depoimento dessa personagem da vida de Belo Horizonte traz as mesmas características múltiplas que ilustram muitas vidas carregadas de significados vinculados à história da produção cultural e da política brasileiras.
Teresa Cristina Mota (TCM): Nely você é uma pessoa de muitas jornadas, muitas histórias. Como você se apresentaria a quem não te conhece?
Nely Rosa (NR): Meu nome é Nely Rosa, nasci em 1953, portanto estou com 69 anos, vou entrar agora na década dos 70. Mas não tenho medo da idade, sou mulher, lutei a vida inteira. Comecei aos 15 anos de idade, já trabalhando como modelo, como vendedora de carrinho de fruta, como estudante, eterna, do Colégio Estadual [Central]. Desse modo começou meu interesse pela área cultural e política, dentro do Colégio Estadual.
(…) Ai foi minha relação com a cultura que começou até dentro do próprio Estadual, o teatro e a revista, as produções de dentro do teatro, de dentro do Colégio Estadual Central. No colégio, as publicações eram do diretório, do DA. Isso é inicio da década de 70, realmente isso não tem nada guardado, a não ser O Vapor que começa nessa época. Ali era difícil, porque era um movimento muito político, a gente não foi ligando… Aí era ir pra casa do Fernando Pimentel (1), pra reuniões políticas e não tinha esse entrosamento com a área de criação; era militância mesmo. Saindo do Estadual eu não fui pra universidade, eu fui pro DCE da [Universidade] Federal que era na [rua] Guajajaras, ao lado do Saul, o bar que a gente frequentava – onde eu me reunia com os amigos que estavam começando a vida como artistas – Murilo Antunes (2), Fernando Brant (3), tinha Toninho Horta (4), Marcinho Borges (5), os irmãos daquela época. Aí começamos a frequentar o DCE da Guajajaras onde estava Virgílio Guimarães (6), João Batista dos Mares Guia (7) , Flávio Andrade (8), Flavio Serpa (9).
(TCM): Então assim começa a história de seu envolvimento com a imprensa alternativa?
(NR): Aí veio a ideia do Gol a Gol, quando começa minha relação forte com a imprensa alternativa. Aí muda tudo: o Gol a Gol foi uma mudança também na cabeça do pessoal do DCE, porque até então era um ambiente muito militante politicamente, então já foi começando uma coisa bem mais aberta.
Mas, quando chegou a turma do Vapor, era um pessoal mais jovem, mais louco, já usava droga – foi o que mudou nossa cabeça. O João deu uma sala pequenininha pro Vapor, então começou uma nova edição, uma nova configuração com os desenhistas, com a parte artística. Eu não conhecia ninguém – eu fui conhecer Benjamin[1], grande artista hoje -, sentado na rua desenhando e tentando vender desenhos pra ter dinheiro pra comer. As obras dele no Vapor eram de uma militância incrível. A gente falou com ele: “Vamos pro Vapor?! Humberto Guimarães[2] e outros grandes desenhistas: “Vamos pro Vapor!” Sergio Gama: “Vamos pro Vapor!”. Nem de Tal[3]: “Vamos pro Vapor!” Então fomos reunindo uma turma, quase toda masculina, Rodrigo Leste[4], Sergio Gama, Nem de Tal, Aloísio Morais[5] – mulher ali só tinha eu nessa época. Começamos a fazer O Vapor, outra linguagem, outras personalidades que eram entrevistadas, não eram só as políticas, o pessoal ligado ao corpo, à criação literária, ao teatro. Então a vida muda completamente – também começo a fazer teatro nessa época.
A gente tinha que trabalhar, lutar pelos amigos que estavam sendo presos, visitar os amigos presos e sentir o medo de também ir embora, de ser presa, de ter a casa invadida. O medo existiu muito nessa época. Acho que por a gente ser mais loucos, não ligados a partidos políticos, a gente adotava outra linguagem – mas sempre defendendo as agendas, sempre indo nas caminhadas, passeatas, correndo da polícia, participando das manifestações, eu não tinha essa coisa partidária política forte.
Então aqui começa com Rodrigo Leste, Sergio Gama, Aloísio Moraes, Flavio Serpa, o Mauricio Vasconcelos e Humberto Guimarães, Ivan, as fotos eram do Nem de Tal e do Maru. A diagramação era uma coisa assim, que começou a mudança total da estrutura – a gente já começa completamente mudando toda a diagramação. E lógico que procurando um patrocinador, obvio que não conseguia. Então a gente fazia isso com o suor e o DCE dava o papel.
(TCM): A inspiração para o titulo O Vapor, qual a origem?
(NR): (Risos) Droga, sexo e rock’n’roll!
Elizabeth Fleury (EF): E como funcionava a venda desses jornais?
(NR): A venda era na rua, gente. A gente saía. Eu com aquele tanto de homem, uma mulher entrava no bar vendendo. A gente começava pelo Edifício Maletta, óbvio. Não existia Savassi, ia até o bar Veia Poética.(…) pessoal novo, vão entrando mil desenhistas novos e mil loucos começam a participar daquilo. (…) Aí começou até um distribuidor, nessa época, a ajudar a levar O Vapor pras bancas. (…) Aí começam a chegar os anunciantes, livraria Itatiaia, livraria Ouvidor…
(TCM): Então você diria que produziram um grande impacto na vida cultural e política daquela época?
(NR): Sim, muito! Nós tínhamos essa noção, tanto que O Vapor acabou e começou a Circus. A gente deu fim no Vapor porque o DCE já estava indo super bem com o Gol a Gol, distribuía de graça. Aí a gente pensou na revista Circus, que seria outra alternativa diferente. A juventude participava, era uma coisa quente, era mais engajada, era mais política. Não é igual a juventude de hoje. (…) a relação política da década de 80 muda completamente e vai pra criação, tem os exilados chegando. Vem a anistia. Final de 1979 a Dona Derna morre – eu compro a pizzaria Dona Derna e transformo em Casa dos Contos. Porque, na hora que o Nemo [filho de Dona Derna] foi me passar o contrato o nome original era Casa dos Contos. Tive que tirar o chapéu – Dona Derna, a italiana abriu a primeira cozinha de Minas em Belo Horizonte. Foi uma italiana! Então, em homenagem a ela, eu coloco nome de meu restaurante como Casa dos Contos. E a Casa dos Contos foi uma transformação na vida de todos. Primeiro porque todos os exilados que estavam chegando em Minas iam pra lá. Os jornalistas, os artistas e todo mundo. Veio a primeira eleição, foi Tancredo [Neves] disputando com Eliseu Resende. A turma mais rica e intelectual, mais fina, estava apoiando o Eliseu, e a Casa dos Contos fez um almoço pro Tancredo. A classe artística e cultural apoiava o Tancredo. Aí sim, fizemos lá na Casa dos Contos o Manifesto dos Mineiros, em apoio à candidatura do Tancredo.
Começa uma ação completamente diferente na minha vida – temos que eleger alguém. A gente nunca tinha ido votar, então foi aquela festa na nossa vida. Aí o Tancredo ganha a eleição em Minas Gerais. Foi uma surpresa, pois era uma coisa assim pequena – todo mundo falava que ele não iria ganhar. E havia uma classe cultural grande e poderosa, apoiando o Eliseu. Então foi a primeira vez que nós artistas fomos pra rua e fizemos o primeiro show político pra uma candidatura, que foi pro Tancredo ao governo de Minas.
(EF): E o Ato Público de 1980?
(NR): A minha ligação com o ato público é uma coisa muito forte. O Bernardo Mata-Machado falou comigo: “As meninas do QuemAmaNãoMata estão querendo fazer um ato na Igreja São José”. Eu achei aquilo lindo, achava importantíssimo isso, QuemAmaNãoMata. Mas aí já conhecia a Miriam [Chrystus], você [Beth Fleury], Celina Albano, já éramos amigas. Então começou uma relação com o QuemAmaNãoMata. E teve o espetáculo em praça pública em 1983, eu fui lá ajudar Bernardo – foi uma coisa simples [um júri simulado], e me emocionou muito. (…) Aí foi surgindo a amizade com vocês até a gente se reencontrar no QuemAmaNãoMata numa outra transformação, em um outro ato público, agora há bem pouco tempo [2018]. Desta vez houve uma mudança total do QuemAmaNãoMata. Nessa mesa aqui em casa, nós votamos numa logomarca nova, as agências de publicidade doaram (pelo contato que eu tinha) – criaram as marcas pra gente, elegemos a marca, escolhemos.
Pela amizade que tenho com eles eu falei [com donos das agências de publicidade]: “Olha não é uma concorrência! Eu estou pedindo pro pessoal de criação de vocês fazer uma arte e mandar pra gente. O grupo vai discutir e escolher a logomarca que preferir”. Fui atrás de pessoas mais próximas, que conhecia porque mexia com isso nas campanhas políticas, trabalhei no governo do Estado, trabalhei na prefeitura. Mobilizei as agências. Foram seis agencias que entregaram a arte. Fizemos uma reunião aqui em casa, teve uma votação aqui nessa mesa e aí ficou essa marca sagrada. (…)
Todas as agências já tinham participado de trabalhos comigo. E eu pensei no Gustavo [Greco] porque é tão moderno, afinal de contas é neto de Dona Helena [Greco] – fui bater na porta dele. Liguei pra ele: “Ah Nely eu quero sim, quero fazer em homenagem a minha avó”. Chamei Mirian [Chrystus] e fomos até a agência dele. Ele se levantou e falou assim: “Quero fazer essa marca, eu vou fazer essa marca!”. E acabou sendo mesmo o grupo gostando muito escolhendo a marca dele! Depois disso, nós já pensamos numa coisa grandiosa, um show na Praça da Estação. Mas aí os planos vão diminuindo porque não se arruma dinheiro, vai ficando mais reduzido. Íamos fazer o ato público em frente a Casa do Jornalista. Depois, quando vimos quantos ônibus passavam ali, percebemos que era impossível. Por isso fizemos em frente à Escola de Direito – ali é uma praça pronta pra isso. A tristeza foi a chuva. Porque nós montamos toda a estrutura, com palco, aparelhagem de som, e a chuva começou um dia antes. Como vimos que não parava, pensei: a gente tem que ganhar pelo menos um toldo pra colocar aqui. Porque tudo o que foi feito ali a gente ganhou: ganhamos o palco, o toldo, as cadeiras – toda a produção dois amigos meus estavam fazendo. Tudo deu certo. Virou um ato artístico, cultural e foi muito forte com a presença de pessoas completamente novas. Sem ensaio! Nós fomos nos reunindo por vários meses no Pedro Paulo Cava, no Teatro da Cidade – de um dia pro outro e aconteceu.
MIRIAN CHRYSTUS
NELY ROSA
RODRIGO DA CUNHA PEREIRA
ELIZABETH ALMEIDA
ALOÍSIO MORAIS
PEDRO PAULA CAVA
ELIZABETH FLEURY
CONCEIÇÃO RUBINGER
BERNARDO DA MATA MACHADO
REALIZAÇÃO
PARCERIA
APOIO FINANCEIRO
Emenda Parlamentar, mandato da deputada federal Áurea Carolina (PSOL)
APOIO INSTITUCIONAL
Fundação Oswaldo Cruz